domingo, agosto 22, 2010

Cor da Fé

Para os meus amigos que sentem que a LOUCURA merece um Elogio

PAPA, bom domingo, e que para a sua próxima consagração dominical se dispa de vestes de ouro que Deus não tem a cor desta Fé

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RELÍQUIA DE MENINA

by Adolfo Inácio Castelbranco Oliveira

on Sunday, April 4, 2010 at 2:14am

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O dia acordara há duas horas; eram oito da manhã, o tempo estava quente, os raios de sol entravam pela persiana de madeira que defendia a vidraça de pedras que podia saltar incautamente da mão de algum “candengue” desajeitado e...lá acontecia o rombo no orçamento.

“Ela” dá um salto da cama, enfia os chinelos corre para casa de banho e manda-se para dentro da banheira.

Tinha de se arranjar rapidinho pois era Domingo e não queria chegar tarde à Missa das onze. Tinha tempo, mas combinara com a sua amiga Carmito passar lá por casa por volta das dez.

- Sai um chuvarada rapidinha que mana Carmito espera-me!

Depois de fazer tudo o que teria de fazer, (e neste caso não tenho conhecimentos para especificar) enfia o “mata-bicho” pela goela abaixo, um “inté dona Mãe”, e sai airosa, respirando o ar puro, em passo ligeiro, cumprimentando pelo caminho tudo quanto era amizade.

As mulheres ao passar gabavam-lhe o andar de menina virgem e a beleza do vestido que se ajustava ao corpo sem no entanto o fazer sobressair, até porque as curvas ainda não se tinham definido. Levava um vestidinho ligeiro, sapatos de cabedal, uma malinha bem à menina, o cabelo, de tamanho médio encarapinhado e hesitantemente caído sobre os ombros

Como não podia deixar de ser, consigo o “rosário e a bíblia”. De tenra idade, era uma das meninas crentes da cidade, praticante assídua da missa e da catequese, lugar privilegiado para se encontrar com as coleguinhas e as amiguinhas que não moravam nas redondezas, e não escondia a sua religiosidade, o seu temor a Deus e o respeito à lei divina.

Não demorou muito a apanhar a amiga e seguiram para a Igreja – a missa não esperava por elas, e queriam sentar-se nos bancos da frente para não perderam pitada do que o senhor padre ia dizer naquela manhã.

Depois era o tempo da hóstia, da confissão, de dizer o mesmo porque na sua idade o único pecado que tinha, aos olhos dos homens era ser nova demais, e eles respeitarem de certo modo os mandamentos.

Era na despreocupação que “Ela” soltava a liberdade sem mostrar leviandade, sem mostrar sentimentos que não fossem os da caridade, do amor ao próximo do fazer o bem pelo simples prazer que isso lhe dava.

Chegadas à igreja, dirige o olhar de respeito pelo o Crucifixo, benze-se e senta-se ao lado da amicíssima amiga que a acompanhava em cada Domingo de reza.

Aos seus olhos Cristo não tinha a mesma cor, nem carapinha na cabeça. Mesmo desconhecendo que os houvesse de carapinha, “Ela”nunca deixou de acreditar que aquele era o Jesus de todos os seres vivos incluindo a “Cobra Piton a Marabunta Lixada ou mesmo a Hiena Malvada”.

Olhava e não entendia porque é que Deus era branco, mas isso não a incomodava; ela queria que Ele a protegesse, que reservasse um local para ela e para toda a sua família e animais amigos, bem no meio do céu.

Na hora da toma da hóstia fechava os olhos e permitia que o padre, sem luvas, depositasse o pedaço de pão na sua boca simbolizando o corpo de Deus – mas quanto ao vinho, e havendo homens na igreja, não percebia porque só o padre bebia o sangue de Cristo.

“Brrrrr que nojo” e arrepiava-se toda; beber sangue – lá comer o pãozinho sem paladar ainda não era mau de todo, mas agora sangue? Vampiro!

O Domingo, depois da missa, seria calmo, e ela, juntamente com as outras amigas dariam azo a mais uns minutinhos de cochicho de menina e depois tinham que dará à sola que as donas de casa não estavam para trabalhar fora de horas.

O tempo correu, a noite chegou e com ela a entrada da nova semana, em que “Ela” iria, com mais amiguinhas fazer a sua 1ª comunhão. Estava a ser uma semana complicada, os dias teimavam em não passar e ainda por cima cada um tinha 24 horas – uma maçada.

Nessa semana, apareceram uns meninos a pedir esmola; magros, maltrapilhos com cara de fome. “Ela” não tinha dinheiro, era nova, não podia ajudar – elevou os olhos na noite olhou para o céu, e não viu todas as estrelas a brilhar. Uma desaparecera, tendo-se sabido, no dia seguinte que um menino tinha morrido. Era pobre, como pobre eram imensos.

Pela primeira vez a dúvida se Deus era justo envolveu-a, mas na ânsia de fazer a primeira comunhão depressa o pensamento voou para a preparação do acontecimento.

Ei-lo chegado, o dia, o Domingo, e o bem vestir que não se faria rogado – nessa manhã dona Mãe não deu espaço à filha; ela mesma queria vestir a sua menina, queria que estivesse linda quando, ajoelhada, orasse a Deus.

Um vestido de tecido branco até aos pés, na cabeça um véu de renda bordada amarrado por baixo do queixo em laçada lassa para não ferir, e nas mãos, o Crucifixo e o livro da de Deus.

Nas imediações do “Templo” antecedendo o pátio, algumas crianças negras estendiam as mãos aos “escolhidos” para mais um banho litúrgico.

Nos seus rostos desenhava-se o perfil da tristeza, o som da fome, a cor da miséria; eram o espelho da Injustiça, mas também e apenas um número que ainda não fora especificado – não contavam para os governantes e não tinham direito a sentar-se à mesa com Cristo.

Esta era um quadro que corria em paralelo por outras partes do mundo, em versões tão originais quanto a que se podia “apreciar” ali, junto àquela igreja, situada na capital de um território que não sendo livre era de todos. Luanda continha, como outras cidades, aquela obra-prima universal, que não fora pintada por neves de Sousa, Dali ou Michelangelo.

Eram quadros pintados pela Ignorância daqueles que votavam crianças, seres humanos, à morte antecipadamente anunciada. E “Ela” sentiu um nó na garganta, o laço a asfixiá-la - eles tinham a sua cor, e Deus era um branco de longas e alvas barbas vestido de fino manto, “unhas arranjadas na cabeleireira do bairro”, e criara o homem à Sua imagem!

De tenra idade não compreendia o profundo segredo das escrituras, mas sabia, que o Deus pintado nos quadros, o filho d’Ele pregado na cruz, nada tinha de semelhante aos meninos da rua.

E sentiu que também com ela nada tinha de semelhante; nem o sorriso nem a alegria, e reparou que os deuses estavam sempre com a cara de zangados – certamente por nunca terem sido meninos.

- Não é justo!

Não era justo, Deus era injusto, pensou. Porque é que ela poderia ter um vestido lindo de comunhão e os outros nem à boca lhes chegava em cada dia o pão. Reles não podiam rezar: «Pai-nosso que estais no céu, dai-nos o pão de cada dia», porque aqueles meninos não tinham dia – só noite.

“Ela” sentiu o sabor amargo da palavra «Injustiça»; a injustiça que teria de acabar, porque ela pediria a Deus que fosse como ela, amiga dos meninos, e justa com os pobrezinhos. Eles não tinham culpa de não O conhecer, não falar a Sua, não vestir com Ele.

E “aquela menina” entrou decidida na igreja.

A confissão, a homilia – era chegado momento de se dar início à Consagração do Senhor, e mostrou a sua terna e envergonhada felicidade.

Ajoelhada rezou a prece, e mostrou que era crente, piedosa, e de uma paixão que nem o Senhor tinha.

E de terço, na mão rosário de contas e o crucifixo, murmurou:

- Perdoo-Te, Deus, por teres esquecido os meninos que ficaram lá fora.

E benzeu-se; tinha antecipado a sua Comunhão.

Naquele ano de 1946 Deus tremeu; sentiu amargura pela Sua falha, e guardou àquela menina um lugar à Sua mesa.


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