terça-feira, março 30, 2010

Pedaços da minh’alma

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Revelação

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Era a calma, o farfalhar do rio, o ondulado do vento que apaixonadamente se roçava pela frescura das águas serenas do meu Kwanza – “eniliões” de metros cúbicos por hora, minuto, segundo, lavavam o corpo em cada dia de folia.

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Os gritos de prazer, as correrias entre a vegetação arrebatadora construíam o ser dotando-o de tudo o que de maravilhoso o Criador colocara ao serviço dos homens, enquanto que, entre sonhos, crescendo, Cito tomava consciência que o sol não brilhava de igual modo para todos os seus amigos.

Naquela manhã de Domingo, um como tantos outros, Cito não , não porque tivesse empanturrado de véspera, mas porque sentia o estômago contraído, esganado – uma sensação de “vazio-pleno” de bomba relógio quase detonando.

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Saiu para o terreno infinito que circundava a moradia e nem se dignou a deitar um olhar ao “Dog”, preso pela trela à entrada da casota, nem reparando no aceno de rabo que este lhe dedicou – o bicho queria saltar e correr ao lado do dono, dar azo à alegria de mais um dia de brincadeira e pezudo ferradas, mas ficou-se pelo desejo.

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Caminhou pela berma do rio; sabia que não se defrontaria nenhum animal feroz, não se cruzaria com o “Sengue” nem com Surucucu, ou qualquer bicho perigoso a não ser que aparecesse algum animal de duas patas o que era pouco provável, porque não havia memória de tal achado arqueológico por aquelas bandas.

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Ia pontapeando delicadamente os ramos secos, uma ou outra pedra atrevida, e depois atirava-a ao rio provocando círculos, tão iguais aos que seriam as rodas da sua vida até morrer.

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Pela cabeça passeavam as imagens do jantar de Sábado, imagens que o martelavam, corroíam-nos de uma forma que não encontrava justificação.

O que se estava a passar, que significados tinham as nomenclaturas familiares.

O aperto que sentia sobre estas dúvidas durava há algum tempo.

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No Sábado anterior, aproveitando a ausência do pai e tentou abrir as gavetas da secretária do escritório de casa, mas estava fechada – que guardaria de tão importante que ninguém podia ver ou tocar?

Esse facto aumentara a angústia mais do que a curiosidade, e o jantar da véspera fora um suplício; falava-se de tudo um pouco e pouco ou nada do que falavam o tocava.

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Quando o tio não jantava em casa eram sempre quatro à mesa, tal como naquela noite. A mãe, o avô o pai, o filho o filho o neto e mulher do avô, a mãe do pai, que era também a mãe dele.

Era estranha aquela combinação como estranho era a cor que os separava e a diferença de idades da mãe em relação ao pai.

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Nada daquilo condizia com as famílias tradicionais dos seus amigos mais íntimos, dos amigos de lancharada e aniversários, mas até aquele momento, Cito nunca se debruçara a sério sobre tal, e nem a idade de menino lhe tinha dado conhecimentos para perceber a bagunça que era a sua família.

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Tinha tudo que queria, quase tudo, e às vezes também ganhava como subsídio de patifarias um par de tabefes – quando isso acontecia vingava-se no jornal do avô, que não dispensava, e que, claro estava, apenas lhe restava saltar o muro e safar o canastro de umas boas palmadas, se bem que, as que lhe eram prometidas mais tarde mordiam-lhe o “mataco”.

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Mas aquele dia e aquela manhã, não era “um qualquer” e o miúdo sentia que algo estava para acontecer.

Certos silêncios caseiros e o assobiar para o lado por arte dos tios sobre o passado começara a tomar corpo, e paladar da saliva dava indicadores de “sal amargo”.

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Cito já caminhara à meia hora em direcção a nascente, num caminhar quase ao retardador – a sua expressão endurecia com o andar, as maçãs do rosto quase rasgavam a pele achocolatada e a visão turvava-se.

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Parou junto a uma pedra que conversava com a corrente do rio – olhou a água e viu espelhado uma imagem que não era a que os espelhos de casa reflectiam; estava diferente, mais velho, estava cansado e só acordara há duas horas.

A vida começava a pregar-lhe a primeira rasteira e ele tropeçara.

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Sentiu as pernas tremerem, as forças abandonarem o corpo e sentou-se. Postou o olhar perdido na “outra margem o rio” e pareceu-lhe ver um vulto que, semi-escondido no arvoredo, o observava.

Forçou o olhar e apenas viu sombras, folhas dançando, luz entre a densa mata – não havia gente apenas “solidão”.

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Atingiu o clímax, e não a conteve, não se debateu, e deixou rolar as lágrimas que escorrendo até aos cantos da boca lhe transmitiam uma amargo ácido. Pela primeira vez sabia o verdadeiro sentido do silêncio, das gavetas fechadas.

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O “Senhor” dera-lhe a soberba oportunidade de descobrir que era “Órfão” – e ergueu os olhos ao céu, e também pela mesmíssima primeira vez conheceu o Ódio; apeteceu-lhe matar Deus.

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Ergueu-se, e começou a correr, aumentado a velocidade a cada soluço a cada lágrima; corria como louco perdido entre os raios de sol que o perseguiam por entre as copas das árvores – e correu, correu, e não escutou o latido do “Dog” e só parou dentro de casa; o vento secara-lhe as lágrimas quando corria para o desespero.

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No salão, sentada como , na testa, algumas rugas de expressão; estava a avó.

Esta olhou-o no fundo dos olhos, para além da carne, dentro da alma.

Sabia que o seu “neto” chorara mas nada lhe disse ou esboçou qualquer gesto.Nem um aceno de compreensão.

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O neto estava estático olhava-a, fulminava-a, tremia como varas verdes, os olhos relampejavam e o cérebro esturricava, e não se mexia.

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Ela levantou-se e dirigiu-se pausadamente para a cozinha; passou por Cito, virou propositadamente a cabeça para o lado contrário, para o lado de fora da casa, pela janela da vida, mas suficientemente atenta que lhe permitiu escutar o que esperava, e perceber o que no meio de um grito abafado vindo do peito o neto disse.

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- Mãe! Quero comer.

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A Avó encolheu os ombros; também não tinha tomado o “matinal” pequeno-almoço.

Respondeu-lhe ao passar pela soleira da porta.

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- A comida está na mesa.

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