DÁ-MOS DEPOIS
DÁ-MOS DEPOIS
As cálidas
águas que acariciavam a areia da praia de Key Biskane subiam gentilmente pelo
imperceptível declive impulsionadas pela determinação da mãe natureza molhando
os pés ao Dr.
Pni Semal Matrevo. Para lá da linha que dividia o céu do mar havia
outras praias, outros areais, outro clima igualmente ameno, outras brisas
reconfortantes, mas seguramente a mesma linha de horizonte. À memória chegavam
imagens do passado não tão longínquo como por vezes deixava que se percebesse
nem tão recente quanto desejava que tivesse sido com vontade de mudar a rota ao
planeta e colocar os ponteiros do cronómetro a correr em sentido inverso. Na
ignorância pela ausência custava-lhe crer que o mundo abaixo do equador se
modificara tanto que os homens todos já só falavam uma língua – a da corrupção
burla crimes no geral e generalizados – conquanto que do lado de cima
proliferavam fabricantes e vendedores de máquinas de destruição para que o
status no sul se mantivesse. A aragem corrente apenas podia fazer ondular os
cabelos da imaginação; nem para as gaivotas planarem dava, incluso jogar finas
partículas de areia para tapar os buracos dos caranguejos.
No mar, a
curta distância os iates apresentavam as velas amarradas e navegavam pela
rotação das hélices dos motores dentro de bordo que trabalhavam a combustível
produzido pelos grandes grupos da especialidade, os mesmos que subsidiavam
campanhas contra a poluição atmosférica e a defesa dos oceanos. Porém, para Semal
Matrevo, importava prioritariamente estabelecer e escalonar prioridades de
acordo com as oportunidades surgidas na deslocação ao continente americano, onde
o calor apertava, a temperatura subia, o vento adormecera por momentos e a
vontade de trabalhar apresentara um pré-aviso de greve. Implausivelmente
sentou-se na areia colocando as mãos atrás da nuca; decidira ficar um pouco
mais a gozar o divino e nada mais aconselhável a fazê-lo sentado numa espécie
de repouso fisco depois duma maratona intelectual. Tirou os óculos escuros e o
pólo começando a desenhar na areia com o indicador da mão esquerda uma espécie
de vivenda murada com gaveto para duas ruas, que só ele conhecia, e terminada a
hipotética construção desfazia tudo e retomava a tarefa à medida que a maré ia
enchendo, até que ao cabo de uma hora levantou-se sem apoios, vestiu a roupa
que tirara repôs os óculos na testa e pachorrentamente afastou-se da orla do
mar.
O sol de Dezembro era o
mesmo que o de Agosto pela exacta razão que à terra só se lhe conhecia uma lua
e já abeirado do carro que alugara meteu a chave à porta, entrou ligando a
ignição. Doze segundo depois arrancou atirando para trás das costas o mesmo que
anos e anos se vira forçado a atirar, demorando 45 minutos a chegar ao
apartamento que alugara para os 19 dias que estacionaria obrigatoriamente
naquela parte do globo; às 16:55 estacionava no parque privado do aglomerado de
residências, umas em prédios outras em casas térreas numa espécie de condomínio
fechado, curiosamente sem muros e portões ou barreiras para viaturas. Subiu de
elevador ao 2º andar piso onde se situava o apartamento que alugara, vestiu uns
calções de banho descendo de imediato pelas escadas dirigindo-se à piscina de
uso exclusivo aos condóminos e turistas hospedados e deixando os chinelos na
berma das piscina mergulhando nas águas paradas límpidas e mornas expostas
durante praticamente todo o dia aos raios solares permanecendo imerso
sensivelmente 30 segundos e com duas braçadas foi sentar-se num degrau interior
que lhe permitia manter a água pelo peito e deliciou-se a brincar com a água
chapinhando-a contra o rosto, não tardando mais de 40 minutos para abandonar o
local; tempo de se atirar ao trabalho, pegar de frente entrevista sob o tema
Envelhecimento Activo que o seu amigo Mestre Jadei Raquetadas facultara em fins de Junho
do ano anterior a Eduardo Azevedo Couto afim deste apresentar a apresentar conjuntamente
com André Castilho, M. André
Soares, no âmbito da disciplina de Psicologia e
Gestão de Recursos Humanos, unidade curricular da Licenciatura de Psicologia da
Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa, e lhe pedira posteriormente
para dar uma vista de olhos comentando com isenção, colocado de parte o facto
de serem amigos, tendo inclusive manifestado a um dos entrevistadores e ainda
discente na faculdade interesse em apresentar o mesmo a um público fora do círculo
universitário.
Aceitou o
repto de contribuir com comentários; nada custava satisfazer o pedido do amigo
servindo até de distracção e preenchimento das horas de ócio e de couceira no
sofá; hesitou se o leria antes ou depois de jantar optando para antes e após
uma banho rápido para livrar o corpo do cloro da piscina tendo deixado as
folhas em cima da mesinha de centro da sala que imprimira antes de partir de
Portugal. Despachado da casa de banho apanhou o dossier e sentou-se na varanda
apreciando a despedida do sol anunciada pelos raios avermelhados alaranjados
que surgiam já do lado de lá da linha do horizonte e pensou – Há gente do lado
de lá a caminho da labuta outros a almoçar e ainda quem esteja a preparar
bombas para destruir os sonhos de milhões de crianças
Reabriu o
livro que levara para tentar traduzir para castelhano «Poemas da resistência
Chilena» oferta do seu amigo Paulo Ferreira, uma edição de Março de 1977 da
Limiar traduzida por Egipto Gonçalves pessoa que não conhecia, livro que
oferecia como capa um cartaz do tempo da Unidade Popular e leu de Mahfud Massis,
«Ninguém é profeta na sua terra» exclamando – nem poeta a menos que seja pateta
que esta droga de ser escritor só dá para afilhados partidários vedetas da
comunicação ou membros de seitas – dando início à leitura, postos os óculos
graduados que usava apenas para ler.
Como ao prego bateram-me sempre na cabeça.
Então fiz-me córneo abismante profundo.
Pude quebrar o fémur de Deus e mais uma costela.
De tanto bater o martelo lixou-se.
Se em vez de me bater no crâneo me batesse nos guisos,
o martelo estaria ainda vivo e coleante,
ou fazendo o amor nas lojas de ferramentas.
Por esta razão há quem garanta
que ninguém é profeta na sua terra.
Fechou o
livro, pegou no trabalho e deu início à tarefa. Não podia falhar; devia fazer a
leitura cautelosamente para que a sua opinião fosse clara e inequívoca, e leu…
[…No entanto em Portugal e em
outros países desenvolvidos, subsiste o problema financeiro dos idosos que
mesmo depois de ultrapassada a idade da reforma, (que pode variar entre os 64
e os 67 anos dependendo das leis de cada país), se vêm obrigados a trabalhar
para sobreviver devido às baixas reformas e à falta de apoio familiar e
social. Outra vantagem de reduzir a atividade dos trabalhadores mais velhos
no tempo de trabalho, mas mantendo uma ocupação remunerada ou não, seria a
possibilidade de manter afastada a ideia de uma reforma compulsiva para a
qual alguns indivíduos se sentem ‘empurrados’.
O momento da reforma apesar de
normativo, quando não é devidamente preparado e planeado, para muitos pode
ser um acontecimento de vida psicologicamente negativo, por representar o
início da terceira idade ou da velhice, e ainda devido aos estereótipos e
preconceitos por parte da sociedade e por parte dos próprios indivíduos
reformados.
Em alguns casos, como a reforma
compulsiva, mal planeada ou o despedimento, a falta de atividade física e
cognitiva surge praticamente de um dia para o outro. Nestes casos se não
forem encontradas as estratégias de coping adequadas para ajudar a
ultrapassar os novos desafios e uma alteração radical no estilo de vida, será
naturalmente difícil de aceitar e ultrapassar o momento da reforma, o que
pode dar origem a sofrimento e mesmo patologias do foro psicológico como
depressão e ansiedade, principalmente depois de uma vida, em que para muitos,
a grande parte do tempo foi dedicada ao de trabalho…]
|
Ao cabo de
algum tempo deixou escapar em voz alta, – Ó amigo Raquetadas para além da
rapaziada ter escrito o texto com a gaita do acordo ortográfico faltou-lhe ainda
e não menos importante, introduzir”‘gajas e gajos que andam pelas redes sociais
no engate é cá dum envelhecimento que até ficam mais jovens nas selfies” – dando
por terminada a leitura já com uma série de anotações nas margens para as
transmitir posteriormente. Guardou de seguida o dossier na mala de viagem, saiu
do apartamento dirigindo-se à Loja de Ocasião 24 horas situada no lado oposto
da rua principal onde se processava a entrada e saída das viaturas pertencentes
aos moradores naquele condomínio afim de comprar um hambúrguer e uma Coca-Cola
americana, gentilmente recebido por uma empregada que não deixava dúvidas genealogia
sul-americana quer pelo aspecto quer pela pronuncia meio espanholada que o
levou a dirigir-se-lhe no seu presumível idioma.
- Buenas noches señorita…
- Buenas noches mi nombre es Lista Guadalupe y el señor no es americano
- Soy como se dice portugués
- Habla muí bien castellano para uno extranjero aún con mesclado de
sudamericano que mi gusta
- Gracias usted es muí simpática e guapa también
-No tanto ya tengo 20 soy chilena natural de Puntarenas
*
Pni Semal
Matrevo sorriu sem dar a entender o porquê daquela demonstração de alegria. A
loja estava às moscas àquela hora e aproveitou para dar uma vista de olhos
pelos escaparates escutando Guadalupe cantar…
Vengo de un lugar del universo
donde el día se inicia con el miedo
el temor es cotidiano como air y como el
pan.
Vengo de un hogar en que el terror
es la único lenguaje que si entiende
donde el pensar se castiga con la muerte y
la prisión
…mas era
hora de marchar, vira tudo o que havia para ver e ficara sensibilizado e
agradado com a canção e o timbre de voz da rapariga; dirigiu-se à caixa registadora
para pagar e atirando um piropo “Muy fuerte esse poema de Angel Parra” saiu,
não sem escutar um ‘Ó’ de espanto.
De regresso
ao apartamento comeu o hambúrguer sorvendo goles da Coca-Cola, em lata, e
apreciando as estrelas que já brilhavam à muito e pensou no seu amigo Raquetadas
– Bolas o tipo dá uma entrevista destas e nem dinheiro tem para ir assistir a
um concerto rock no Parque da Cidade e grátis –. Às 23:58 desligou a televisão
e deitou-se rememorando a exultação com que o amigo lhe falara na viagem aos
States que efectuara 17 anos antes – E tinha razão as praias são super as
mulheres ‘mulheres’ um dólar é um dólar e ainda há quem cante ‘Vivre la France’
– e adormeceu desconhecendo que a ‘guapita’ da loja de ocasião, enquanto se
preparava para fechar o turno, comentava à colega que a ia substituir a
conversa que tivera com o estrangeiro – Mira niña el tío era muí guapo
À distância
de 11 horas viajando por avião Raquetadas entrava no minimercado onde
usualmente comprava os mantimentos do dia decidido a comprar 1 lata de atum e 2
pães de centeio. Recolhidos os produtos sem somar o valor do atum ao do pão
dirigiu-se à empregada da caixa visivelmente satisfeito por ter visto de
relance que o primeiro estava em promoção
*
- Bom dia menina Mafalda já está melhor
- Bom
tarde que já é meio-dia e dez quem lhe contou que estive doente
- Ninguém apenas ouvi dizer que alguém aqui
estava com…
- Já não é a primeira vez tenha análises para
fazer mas enfim
- Tenha cuidado que isso pode ser mais grave
do que julga
- Obrigado
Raquetadas puxa do porta-moedas para pagar a
mercadoria que colocara no tapete rolante
- Se for mais de 80 cêntimos não levo o atum
- São 83 dá-me depois os três
Cinco
segundo de silêncio e um meio sorriso bastaram para que o rubor se espalhasse
na cara dela, e olhando-o com ar de gaiata apanhada numa malandrice diz – Os
cêntimos…
Inácio
19 a 20
Agosto 2015
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