quarta-feira, setembro 08, 2010

(De Angra a caminho de Massamá)

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UM CANTO

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Veio veloz um passarinho poisar de mansinho

bem perto da imagem de uma Nossa Senhora,

era belíssimo, e mais belo que um pardalinho

dum encantar tão doce de tão doce cantadora.

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E cantou só para mim quase em total surdina

Um levíssimo trinado, ó mas que soberba ária

Trazendo mais que saudade ou fingida estima

a lembrança duma pequena mas real canária;

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Deixou para meu espanto afagar-lhe as penas

ao deitar no meu ombro a sua leve cabecinha

roçando-o pelos meus lábios seu bico, apenas

para que sentisse as carícias duma moreninha.

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Depois lá fui adormecer, e ao lado dum sonho

refrescar o pensamento na imensidão do mar

afastar de mim o sobressalto feio, e medonho

e sentir outra vez o sabor agre de me afundar;

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Adormeci hipnotizado ao som daquele trinado

vagueando firme nas ondas dum amor eterno

na esperança de ter muitos sonhos, acordado

e sentir de verdade, o calor de um beijo terno.

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Visionei no dia seguinte uma mesma sedução

indo oferecer-lhe meu braço para seu poleiro

que sem rejeitar lançou um olhar de devoção

roçando-se de novo, no seu ar meio matreiro.

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Senti que naquela noite escura, sozinha ficou

a vaguear com suas asas no meu pensamento

sem que apercebesse que toda a noite vigiou

para que das asas não fugisse um só momento;

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Era a mais linda e que discreta e firme guardiã

que alguma vez os soltos medos meus serenou

ao brindar-me com sorrisos o acordar da manhã

e dizer por fim, “meu amigo o teu temor acabou”

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Organizei rápido lindíssima uma festa encantada

Construindo-lhe sem querer um pequeno postigo

Esquecendo, sem reparar, um tempo já passado

quando do meu coração, fiz seu o eterno abrigo.

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Pediu logo ao pensamento, e que voasse lesto

por entre mil gotas caídas, caindo de fria chuva

que fosse a sorrir mas não querendo só o resto

nem que a visse, toldada, ou quase meia turva;

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Mas vem o pensamento tão turvo grão na asa

por não ter encontrado o que fora lá á procura

pois perdera-se, fora bater a uma errada casa

onde morava uma tristeza, e grande amargura.

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Mandei-o de novo solícito, e outra vez de volta

procurar-me lesto o que por descuido se perdeu

que desse um olhar perspicaz na sinuosa costa

e deixasse de uma vez de ser como eu um ateu;

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E ele foi, sei, falar a Nossa Senhora de Fátima

mostrou-lhe somente guardado um seu retracto

a que ela replicou sofrida ao ouvido esta máxima:

“ é bem parecida, e com certeza é de bom trato”;

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Indicou-lhe sem delongas, um brevíssimo atalho

muito seguro, mais claro e de fácil florido acesso

e que esquecesse de todo, qualquer espantalho

se queria para sua missão, o almejado sucesso.

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Regressou-me mais uma vez tão oco, tão vazio

sem encontrar, ou descortinar um ser desejado

que fui correndo, acender leve, o pequeno pavio

dono duma vela antiga mas que estava apagado;

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Vela essa que outrora pouco ou nada tinha ardido

mas que fluorescente luz já não podia agora dar,

que fiquei, mesmo não querendo de novo perdido

envolto no pálido das ondas pérfidas, meu sonhar

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Olhei com carinho, e com certo olhar emudecido

pequena intrusa sem pedir na minha vida entrara,

recebendo dela apenas piar lânguido entristecido

como a dizer, que também dentro, se enganara;

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E, suave num voo de violino, muda e silenciosa

trouxe-me no bico, dos meus filhos seus retratos

para dizer segura e de uma forma muito gostosa

«eles existem, trabalha para que fiquem gratos»

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Sorri, deixando o meu coração desarmado, falar

declamei um poema feitiço, reparando depressa

que atenta escutara, batendo asas como a voar

num bater tão certo, compassado e sem pressa.

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Veio tão virgem, meu ombro carinhosa debicar

oferecer-se por momentos, minha companheira

no preciso instante que já toldado tornava a ficar

preso em lembranças gastas, numa vida inteira.

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“Vai, levanta-te“ disse-me altiva da minha janela

“tira do caminho esses tão negros pensamentos

e sai para a vida, firmeza homem, e faz-te a ela

que encontrarás pelo seguro novo entretimento;

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Vive à toa mas com toda a razão dum viver sadio

que das ruas e duma aventura, trarás a bonança

e verás com os teus olhos noutros olhares vazios

um novo mundo esse feito só duma sã esperança”

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E vesti-me, saindo, e aventurei-me com coragem

Buscando a cada rosto visto uma certa igualdade

que se advinha, e por escondida ser na vantagem

do certo o saber qual era essa minha infelicidade;

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E em cada encontro juntava mais que a incerteza

o olhar perverso, a maldade num sorriso, trocista

mais os gestos com classe de tão falsa fortaleza

no encolher de ombros como dizer «não insista».

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Mal chegava noite vinha sacro santo interrogatório

emplumando a cabeça e com bico assaz retorcido

apontava-me zangada o meu vazio frio dormitório

onde morava agreste negro pesadelo e merecido;

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Foram certas e tamanhas, todas as minhas falhas

e tão pouco, que desconsolo, um qualquer acerto

que um dia ela, ó Santo Deus, e que Ele me valha,

que na aurora partira calada, para meu desespero.

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Fiquei dentro, sentindo um bater descompassado

a revolta amarga, as facas, um aperto no coração

no peito, estalando qual canhão um grito alucinado

a chamar em desespero, aquele amor de tentação;

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Enclausurei-me de novo, e numa profunda agonia

olhei mil postais que só por precaução lá guardara

pensando que me acontecesse, o que mais temia

e que agora só me restava, o que tanto procurara.

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Parti de novo e do norte rumei via ao tenebroso sul

conduzido por uma incerteza fútil que se me instalou

para distinguir do meu céu vermelho a sua cor azul

de tão grande ser abismal este vazio que me restou;

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Escondido, nas penumbras de uma cinzenta cidade

disfarcei exteriorizando em cada olhar a frustração

tentei ver nos pares abraçados alguma serenidade

ao trocarem mil beijos em rituais duma fina emoção

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Oh e quantas histórias como a minha, ali moravam

a cada quarto, canto, ou em vãos de um sujo bordel

onde de pranto todos os seus sentidos se atolavam

entre desejos queridos mas nunca postos no papel.

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Ao entardecer, parecia ver poisada em cada galho

sombra frágil, reflectindo-se-me a pequena silhueta

da avezinha que outrora me trouxera seu agasalho

das bandas saudosas de um S. Mateus da Calheta;

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Assim, levado pelo brilho de duas asas de um corvo

fui construindo campos repletos de mero queixume

gizando a esperança de nunca vir a ser um estorvo

para este corpo tão a arder em ardente brando lume.

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Cito

1996

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