(De Angra a caminho de Massamá)
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UM CANTO
Veio veloz um passarinho poisar de mansinho
bem perto da imagem de uma Nossa Senhora,
era belíssimo, e mais belo que um pardalinho
dum encantar tão doce de tão doce cantadora.
E cantou só para mim quase em total surdina
Um levíssimo trinado, ó mas que soberba ária
Trazendo mais que saudade ou fingida estima
a lembrança duma pequena mas real canária;
Deixou para meu espanto afagar-lhe as penas
ao deitar no meu ombro a sua leve cabecinha
roçando-o pelos meus lábios seu bico, apenas
para que sentisse as carícias duma moreninha.
Depois lá fui adormecer, e ao lado dum sonho
refrescar o pensamento na imensidão do mar
afastar de mim o sobressalto feio, e medonho
e sentir outra vez o sabor agre de me afundar;
Adormeci hipnotizado ao som daquele trinado
vagueando firme nas ondas dum amor eterno
na esperança de ter muitos sonhos, acordado
e sentir de verdade, o calor de um beijo terno.
Visionei no dia seguinte uma mesma sedução
indo oferecer-lhe meu braço para seu poleiro
que sem rejeitar lançou um olhar de devoção
roçando-se de novo, no seu ar meio matreiro.
Senti que naquela noite escura, sozinha ficou
a vaguear com suas asas no meu pensamento
sem que apercebesse que toda a noite vigiou
para que das asas não fugisse um só momento;
Era a mais linda e que discreta e firme guardiã
que alguma vez os soltos medos meus serenou
ao brindar-me com sorrisos o acordar da manhã
e dizer por fim, “meu amigo o teu temor acabou”
Organizei rápido lindíssima uma festa encantada
Construindo-lhe sem querer um pequeno postigo
Esquecendo, sem reparar, um tempo já passado
quando do meu coração, fiz seu o eterno abrigo.
Pediu logo ao pensamento, e que voasse lesto
por entre mil gotas caídas, caindo de fria chuva
que fosse a sorrir mas não querendo só o resto
nem que a visse, toldada, ou quase meia turva;
Mas vem o pensamento tão turvo grão na asa
por não ter encontrado o que fora lá á procura
pois perdera-se, fora bater a uma errada casa
onde morava uma tristeza, e grande amargura.
Mandei-o de novo solícito, e outra vez de volta
procurar-me lesto o que por descuido se perdeu
que desse um olhar perspicaz na sinuosa costa
e deixasse de uma vez de ser como eu um ateu;
E ele foi, sei, falar a Nossa Senhora de Fátima
mostrou-lhe somente guardado um seu retracto
a que ela replicou sofrida ao ouvido esta máxima:
“ é bem parecida, e com certeza é de bom trato”;
Indicou-lhe sem delongas, um brevíssimo atalho
muito seguro, mais claro e de fácil florido acesso
e que esquecesse de todo, qualquer espantalho
se queria para sua missão, o almejado sucesso.
Regressou-me mais uma vez tão oco, tão vazio
sem encontrar, ou descortinar um ser desejado
que fui correndo, acender leve, o pequeno pavio
dono duma vela antiga mas que estava apagado;
Vela essa que outrora pouco ou nada tinha ardido
mas que fluorescente luz já não podia agora dar,
que fiquei, mesmo não querendo de novo perdido
envolto no pálido das ondas pérfidas, meu sonhar
Olhei com carinho, e com certo olhar emudecido
pequena intrusa sem pedir na minha vida entrara,
recebendo dela apenas piar lânguido entristecido
como a dizer, que também dentro, se enganara;
E, suave num voo de violino, muda e silenciosa
trouxe-me no bico, dos meus filhos seus retratos
para dizer segura e de uma forma muito gostosa
«eles existem, trabalha para que fiquem gratos»
Sorri, deixando o meu coração desarmado, falar
declamei um poema feitiço, reparando depressa
que atenta escutara, batendo asas como a voar
num bater tão certo, compassado e sem pressa.
Veio tão virgem, meu ombro carinhosa debicar
oferecer-se por momentos, minha companheira
no preciso instante que já toldado tornava a ficar
preso em lembranças gastas, numa vida inteira.
“Vai, levanta-te“ disse-me altiva da minha janela
“tira do caminho esses tão negros pensamentos
e sai para a vida, firmeza homem, e faz-te a ela
que encontrarás pelo seguro novo entretimento;
Vive à toa mas com toda a razão dum viver sadio
que das ruas e duma aventura, trarás a bonança
e verás com os teus olhos noutros olhares vazios
um novo mundo esse feito só duma sã esperança”
E vesti-me, saindo, e aventurei-me com coragem
Buscando a cada rosto visto uma certa igualdade
que se advinha, e por escondida ser na vantagem
do certo o saber qual era essa minha infelicidade;
E em cada encontro juntava mais que a incerteza
o olhar perverso, a maldade num sorriso, trocista
mais os gestos com classe de tão falsa fortaleza
no encolher de ombros como dizer «não insista».
Mal chegava noite vinha sacro santo interrogatório
emplumando a cabeça e com bico assaz retorcido
apontava-me zangada o meu vazio frio dormitório
onde morava agreste negro pesadelo e merecido;
Foram certas e tamanhas, todas as minhas falhas
e tão pouco, que desconsolo, um qualquer acerto
que um dia ela, ó Santo Deus, e que Ele me valha,
que na aurora partira calada, para meu desespero.
Fiquei dentro, sentindo um bater descompassado
a revolta amarga, as facas, um aperto no coração
no peito, estalando qual canhão um grito alucinado
a chamar em desespero, aquele amor de tentação;
Enclausurei-me de novo, e numa profunda agonia
olhei mil postais que só por precaução lá guardara
pensando que me acontecesse, o que mais temia
e que agora só me restava, o que tanto procurara.
Parti de novo e do norte rumei via ao tenebroso sul
conduzido por uma incerteza fútil que se me instalou
para distinguir do meu céu vermelho a sua cor azul
de tão grande ser abismal este vazio que me restou;
Escondido, nas penumbras de uma cinzenta cidade
disfarcei exteriorizando em cada olhar a frustração
tentei ver nos pares abraçados alguma serenidade
ao trocarem mil beijos em rituais duma fina emoção
Oh e quantas histórias como a minha, ali moravam
a cada quarto, canto, ou em vãos de um sujo bordel
onde de pranto todos os seus sentidos se atolavam
entre desejos queridos mas nunca postos no papel.
Ao entardecer, parecia ver poisada em cada galho
sombra frágil, reflectindo-se-me a pequena silhueta
da avezinha que outrora me trouxera seu agasalho
das bandas saudosas de um S. Mateus da Calheta;
Assim, levado pelo brilho de duas asas de um corvo
fui construindo campos repletos de mero queixume
gizando a esperança de nunca vir a ser um estorvo
para este corpo tão a arder em ardente brando lume.
Cito
1996
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