segunda-feira, abril 12, 2010

Pedaços da minh’alma




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Jóia da Fortaleza


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...Cochichavam entre amigas do liceu os seus amores e desencantos, as faltas de ar ao vê-los passar, e riam... cada uma guardava no seu seio a vontade, e no seu colo o respeito – em cada manhã, tarde, ou fim-de-semana, pintavam a alegria pelos jardins, nas festas de garagens, quando não optavam por uma discoteca bem mexida em casa de um dos amigos, ou as que estavam abertas ao desacato.

Maria, era uma rapariga livre, sensível, quase sempre carinhosa, alegre, e romanticamente idealista; por vezes triste – mas de tantas indefinições era seguramente uma apaixonada pela vida, pelos caminhos e encruzilhadas no que espreitava em cada trilho ou picada, e até pelas conversas com o seu mano quando a “ele” se referiam.

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Da sua conduta percebia-se que aquela menina prendada ia construindo um vulto de mulher plena, ao mesmo tempo que guardava dentro do peito os sentimentos, as vontades, e os desejos inconfessos.

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Naquele fim de tarde de um Abril qualquer, queria estar bela, ainda mais do que era. Proibira-se perder a oportunidade de dançar com “ele” de o sentir, respirar o seu cheiro, deixar que o calor dos seus corpos aromatizasse as ruas, as avenidas e até as praias. Não construía castelos no ar, mas erguia dentro do pensamento uma fortaleza onde queria guardar os tesouros da sua vida – e colocou um vestido ligeiro e solto que deixava as pernas apreciar as pedras e asfalto das ruas por onde desfilava – fazia sobressair uma cintura fina, acompanhando os cabelos soltos em permanente diz que sim...que não... ao malandro sopro da brisa quase doce de um fim de tarde em sábado de paixão.

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Saiu de casa – nos olhos, como se fosse ecrã de cinema, todos viram em cinemascópio, a beleza do paraíso. Não sabia que a sua alegria teria naquela noite, como companheira, a ausência “dele” – não sabia que se embrenhara numa luta sem tréguas contra a opressão, depois de ter efectuado o seu tirocinado nas lutas contra o pai e a sociedade do “tintol e enchidos”.

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Mas Maria não desesperou; na ausência “de um amor” dedicou-lhe os seus mais belos passos de valsa – dançou, rodopiou, largou o seu perfume no terraço do prédio regando cada slow com lágrimas de carinho ao compasso de sorrisos de malícia mal adquirida. E deixou que cada pretendente marcasse a data do namoro, encomendasse o melhor dos fatos, reservasse hotel de núpcias, enquanto ela escolhia, em cada nota de tango, o vestido de viúva com véu de sofrimento – nessa noite ninguém viu que as suas lágrimas eram transparentes.

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As horas bailavam no seu pulso, a madrugada fazia-se alvorada, quando mergulhou nas águas da contra-costa: secara já o corpo a roupa e o pesadelo quando subiu a escadas de pedra da fortaleza de S Miguel – e sentada com os olhos perdidos na baía dos seus sonhos que se espreguiçava da “ponte ao porto”, olhou o pequeno anel que propositadamente colocara no dedo, para que ele sentisse, a jóia rara, comprada com o que juntara em cada aniversário, representando o amor que queria para toda a vida.

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Ergueu-se na muralha de pedra que circundava a fortificação, tirou o anel do dedo, prendeu-o com os lábios, emudeceu-se, e sem qualquer grito lançou-o para o precipício, num fosso plantado de matagal. Deitava fora um pedaço de coração, parte dos seus desejos, sem um gemido, sem um queixume.

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Nunca mais perguntou por ele. As conversas com o seu irmão foram rareando – condenava-se por não lhe ter dito o quanto gostava dele, as vezes que sonhara acordar ao seu lado – a vida, oferecera-lhe o primeiro dos desgostos com que haveria de construir a sua história de mulher.

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O fim do tempo de meninice anunciava-se; sabia que o mundo a esperava, e teria de se preparar para o enfrentar, e preparou-se, correndo continentes, gravando sabedorias, amar e ser amada.

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Mas em cada beijo dobrava o prazer – beijava por incompleto; e em cada entrega fazia-a pela metade. Coloria cada orgasmo de um doce acastanhado, sorria a cada piedosa mentira, oferecia “traviatas” a cada galanteador de oportunidades.

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Aquela que em menina outrora comprara a ilusão nas escadas do liceu, numa gargalhada dele, numa passagem irreflectida pelo seu “caminho”, seria livre, e cantaria as orgias em nome de um amor que deixara escapar por timidez – não se culpabilizou, e continuou a sua construção de mulher, sentindo que, no virar de alguma esquina, na entrada de um comboio, no aeroporto de Telavive, Amesterdão Barcelona, ou quem sabe de Luanda, os seus sentidos captariam o mais imperceptível sinal da presença dele.

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E tantas foram as vezes que subiu as escadarias do Bom Jesus de Braga, tantas as vezes que as confundiu com as escadas de pedra da fortaleza de S Miguel sempre que os seus olhos posavam na imagem de um rapaz, de tez morena, e de sorriso agro-doce. Não perdera a esperança de um dia o encontrar – não queria encarnar o papel da mulher destruída de Simone de Beauvoir porque sentia que ele estava vivo, sentia-o no coração, em cada diáspora.

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E estava, e viu-o, numa foto, num mural, entre um gritinho de vitória. Ali, à sua frente – o mesmo olhar de menino triste, a mesma expressão de “quer-me”, engalanou a tristeza cobrindo-a com um manto de alegria. Ligou, e confessou o que durante quarenta anos guardara; falou do passado, das confissões mano a mano, dos arrepios, sem mostrar o presente sem alvorar futuro.

Maria não quis saber o que ele seria, passado anos, que “amores desencontrados” teria amado. Importava-lhe no preciso momento, num breve flash, que, e apenas, o reencontrara – e soltou as amarras.

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- Olá, só agora vi a tua foto no perfil, sou Maria a irmã do...

- Olá Maria, que é feito desse tipo.

- Espera aí um pouco que vou ligar a dizer que te encontrei

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Mais uns segundos de espera.

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- Tem o telemóvel desligado

- Manda-me o número que amanhã falo com ele.

- Sim, fala-lhe, ele era muito teu amigo, gostava muito de ti, e...

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Fez uma pausa, deixou correr o aroma, e confessou provavelmente sorrindo. Eram adultos, podia exteriorizar o seu sentimento sem corantes mas com conservantes porque os anos correm sempre para a frente.

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- E não sabes o quanto eu também...

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Ele calou-se; caíra-lhe o céu em cima, como era possível. Reviveu o passado, as escadarias da vida, todos os degraus onde tropeçou, onde fracturou a alma.

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Maria voltou a colocá-lo no presente.

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- Nunca to disse porque era muito tímida, mas falava muito de ti com o meu irmão

- Amanhã vou falar-lhe e vai ouvir missa cantada; vai ter de me explicar porque razão não me quis para cunhado!

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Largaram uma risada silenciosa; estavam na facebook, não havia som, mas havia muita coisa para escrever, milhares de horas na construção de um sentimento que nunca encontrara a outra muleta. Maria sabia mais dele, coisas que não se dizem, que se sentem, percebem-se em cada linha de contos que não se escrevem páginas de um diário que não se conserva, ou nas palavras mudas traduzidas no brilho baço de um olhar escondido - e mostrou-lhe.

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- Acabei de ler o teu conto “uma relíquia...”, ainda mal me recompus, e sinto ter perdido uma lagrimazinha.

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Ele estava calmo, sentia-se diferente, mais querido e respondeu-lhe.

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- Maria! Gostei muito da foto na escada da fortaleza!

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Um momento de silêncio, de reflexão, o suficiente para voar através dos “atlânticos” aterrar em fortalezas e pintar a lágrima que vertera – e respondeu.

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- Um dia havemos de subir juntos aquelas escadas!

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Maria não queria voltar a deixar que ele se perdesse na escuridão de um presente sem o seu passado, a viver um presente sem futuro; antes necessitava, para aplacar a dor de “séculos” de afastamento, que ele a ajudasse a encontrar no denso matagal da fortaleza de Luanda, logo a seguir do virar da esquina dos sonhos idos, uma jóia, que num dos raros momentos de fraqueza, deixara que fosse o “futuro”, seu fiel depositário.

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