quarta-feira, abril 07, 2010

Pedaços da minh’alma


Um mapa de sonhos

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[Olhou o livro fechado poisado sobre a mesa de estudo do quarto; na capa um desenho que nada lhe dizia, cores que não eram do seu encantamento. Sabia que na impressão do miolo a matéria era uma treta, histórias da treta, e uma treta de História.

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(...no dia de S. João Baptista, de 1128 na batalha de S. Mamede, D Afonso I que se consta ser filho bastardo de Egas, derrota a mãe `a porrada, para depois, conquistando a independência portuguesa em relação ao Reino de Leão num tratado denominado Tratado de Zamora. em 1143...)

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- Vergonha um filho bater na mãe, pois se fosse “hombre” batia no pai diriam certamente os Leoneses, mas a verdade é que ficaram sem um pedaço de terra que dá pelo nome de Portugal, e ainda por cima o pai era um panhonhas que devia ter dado uns acoites ao sacana quando era puto para aprender a respeitar a mãe.

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Depois do desabafo lá abriu o livro, um que começa com a história que não era a dele, de um País que não conhecia, nem sabia se algum dia viria a conhecer. Também pelo que sabia não estava muito interessado – aquela gaita só tinha neve e frio, e ainda por cima chovia no inverno. Exclamou enfadado

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- Devia ser castigo de Deus

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Para ele D Afonso Henriques, o Afonso I, depois de ter recebido um terreno como oferta desatou à batatada com tudo quanto era vizinhança e familiares – uma tristeza, pensava.

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Parou súbito a leitura. Detestava ler, preferia pensar e escrever, transformar em prosa ou verso os seus sentimentos as suas loucuras, não fora um miúdo sonhador, entendendo como quase todos, que a pedra filosofal era obra divina. Não era divina mas na verdade verdadinha o “Sonho Comanda a Vida” e a ele era guiado por muitos sonhos – padecia de “sonhopatologia”. Contudo, muitas eram as dúvidas que o assaltavam e poucas as certezas que o embalavam, e estudar as pantominices que estavam naquele livreco não fazia o seu género – porque tinha de saber em que ano o sacana bateu na mãe!

Não chegava ter batido em S Mamede?

Até podia ter acontecido a cena dentro do WC que das nódoas negras a desgraçadinha da velha não se livraria. Se desfolhasse a história daquele livro leria muitos contos sobre crimes, traições, invasões, epidemias, mas também uma pipa de actos heróicos. Era um país de Heróis, Nobre Povo Nação Valente.

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Fechou o livro, recostou-se na cabeceira da cadeira que estava na varanda, fechou os olhos e por brevíssimos momentos adormeceu.

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Ao som de um som tremendo inexplicado acordou estremunhado, trazido À realidade à vida. Sentiu-se estranho, diferente, o corpo incomodava-o – levantou e foi ao WC, olhou o espelho de frente e não se viu. Os cabelos pretos meio longos, pele sedosa de tez morena bronzeada e os olhos brilhantes tinham desaparecido. No seu lugar, reflectido no espelho, um cabelo ainda preto, uma pele ainda “amorenada”, e os olhos que, com um brilho a tristeza, mostravam-lhe todas as rugas do sofrimento. Sacudiu a cabeça em sinal de espanto e dirigiu-se novamente para o quarto, não o reconhecendo. Dirigiu-se à sala de jantar; tinha a sede de um desidratado, bebeu um copo com água da torneira, pegou no telefone e discou de memória um número.

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O ambiente da sala era de um certo lusco-fusco; sombras apagadas, alguns focos de meia-luz que reflectiam os raios entrados pelas frinchas da persiana. O silêncio era absoluto, o Pepinha não deambulava pelos telhados, e abriu um bocejo à noite.

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O Telefone continuava a tocar sem resposta. Que se passaria para o amigo não atender, se àquela hora, obrigatoriamente teria que estar deitado, porque às 1:30 minutos não era para os meninos andarem na rua, para além que tinham combinado uma madrugada na praia. Estavam em férias de Natal, a água quente e o sol sorridente para os acariciar.

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Finalmente atendem; do outro lado uma voz afeminada, diz “o número que marcou não está atribuído”. Assustou-se; que merda era aquela, que raio de coisa que não estava, o tanas! Pensou que seria uma brincadeira da empregada mas àquela hora só em sonhos.

- “Amanhã” ligo para ele para me explicar a malamba antes de sair de casa – agora cama que se faz tarde.]

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E a manhã chegara, levantei-me, tomei duche, cocei a mona, reparei nas entradas e na barriga, encolhi os ombros e murmurei: “Tou a ficar velho”

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Estava ainda meio grogue de sono quando telefonei ao António confirmando que estaria na estação da Trindade por volta do meio-dia; depois almoçávamos pelo centro, talvez no Lima 5.

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Desliguei, abri o computador, vi a correspondência; o relógio marcava nove e treze – era terça-feira Dezembro andava frio e chuvoso, a barriga começou a dar horas, e nada melhor que ir até à pastelaria para meia de leite e torrada.

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Lentamente, “Crocs nos bootes” em direcção à pastelaria – ao chegar reparei que na paragem de autocarro estava um garoto rondando os 12 anos, moreno, cabelo preto e ar sonhador, mas não o conhecia. Entrei na pastelaria e ouvi , e cantarolei

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- Mapa do mundo distante

Rosa-dos-ventos infante

Caravela quinhentista...

Que é cabo da boa esperança...

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Sorri ao lembrar-me do que me acontecera naquela noite, num país situado num mundo distante, num sonho em que vestira a farda da criança que fora, num passado em que fizera da esperança o meu sonho. Afinal nem sempre o sonho comandou a vida, e muitas foram as vezes que transformara a vida num sonho.

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Tocou o telemóvel; era Cito a contar o sonho estranho que tivera. Desliguei sem lhe ter contado o meu.

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Para quê contar, se ambos tínhamos tido a mesma visão, se ambos tínhamos sido, em tempos idos, crianças - se construíramos a vida em cima dos mesmos sonhos.

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- Senhor, meia de leite e torrada?

- Só café por favor!



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