quinta-feira, abril 15, 2010

Pedaços da minh'alma (fim de série)


UMA BOINA NO CAPIM”

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Último conto da série

LOIADAS

(Pedaços da minh'alma)

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A viagem de regresso das Quedas do Duque de Bragança, passando pela barragem de “Cambambe” seria uma delícia, não fora sentir-se um calor dos diabos e ter sido programada par as férias de Março, o que para um puto de 10 anos não trazia vantagens – ia ficar 2 dias sem os amigos, e ainda por cima, havendo uma cena que tinha de ser “tratada nas horas” – não dava para adiar o lavar de honra que se impunha. De resto, tirando os sacanas dos primos mais velhos a darem-lhe cotoveladas e sopapos, tinha sido um fim-de-semana para fotografar e arquivar na memória.

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Mas o raio da estrada nunca mais acabava e ele sabia, até por ser um puto de rua, que chegaria de noite não podendo encontrar-se com os amigos do bairro. Estavam de férias por isso o assunto que estava pendente com o outro bairro poderia ser adiado por mais um dia.

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Assim não pensavam os outros chefes do Exército das Espadas de Vassoura e Escudos de Tampas de Caixotes do Lixo, grandes guerreiros de fisgadas na caça aos Pardalinhos e outros “Roedores Voadores”, que decidiram, mesmo arriscando umas chinelas na bunda, esperar o companheiro.

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Leão, o cão grande do Tomás, assinalou a chegada do amigo, numa clara demonstração que a amizade não está no número de patas com que os guerreiros marchavam e ele ficava de guarda ao aquartelamento, e também defendendo as manas de ataques súbitos de “putos merdalheiros” que pensavam que podiam roçar as mãos pelas mini saias.

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Mal chegou a casa saltou o muro da casa e reuniu-se com o conselho de guerra para decidirem a estratégia de ataque ao inimigo. A decisão caberia colegialmente a todos e não houve dúvida que o melhor era um confronto a meio da tarde, assim não só almoçavam como tinham tempo para ultimar os pormenores.

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A reunião durou pouco mais de trinta minutos que a fome apertava – decidiram enviar um mensageiro na manhã seguinte para avisar que o combate teria lugar sobre as 4 da tarde, no Terreno do Capim; no fim Tomás e Cito ficaram a conversar sobre as razões daquela tomada de decisão

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- Fizemos bem Cito, não se admite que o estúpido do Periquito tenha apalpado o cu da Rosalina; tínhamos de defender a honra das nossas infantas.

- Já não é a primeira vez que o gajo tenta “amandar” as patas às meninas da nossa corte Tomás, por isso amanhã vou aprisionar o gajo.

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Não havia mais dúvidas sobre o que se passaria; o bairro estava unido e a guerra era inevitável – naquela noite todos dormiriam em paz para estarem a postos à hora de bramir as espadas da justiça.

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No dia seguinte, reuniram-se na fortaleza particular, em casa do Xicronho, mas como sempre o gajo ainda estava a aquecer o pão para o mata-bicho – colocando as sandes debaixo do rabo para as amassar e acalentar. Tinham tempo, dava para uma footebolada entre pontapés e gritos de prazer, antes de começarem a preparar os capacetes, as espadas e os escudos.

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Depois das correrias foram almoçar; a mãe de Cito estranhou o pouco apetite do neto e perguntou se tinha alguma dor de barriga que não o deixava comer “o que normalmente morfava”

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- Não tenho fome mãe e o grupo vai ter uma saída de tarde!

- Vão jogar futebol no Terreno do Capim?

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Cito ficou nas horas; como é que ela sabia do encontro! Saiu e foi ao quarto de Sebas, um criado que tinha quarto e casa de banho privativa, para além de ter direito a fazer parte da “corte dos meninos”

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- Seebasss, quem é que te mandou falar com a mãe sobre “esta tarde”.

- MininosCito hojeu inda ná fáló quá sinhóra”!

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Depois de escutar a inequívoca explicação de Sebas, mesmo continuando desconfiado, Cito lembrou-lhe que tinha de estar no largo depois de almoço, às duas e meia, porque o exército ia iniciar a marcha a essa hora.

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Almoço comido, os bravos guerreiros do “pó de talco” começaram a reunir-se no jardim do largo para a contagem dos efectivos e inspecção do armamento. “Tudo a postos”, muito mais prontos para a paulada do que para os estudos, iniciaram a caminhada depois do gaiteiro ter dado toque de marcha com a gaita de barclite.

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Faltavam cinco minutos para as 16 horas quando chegaram à arena com tempo de sobra para se posicionaram e montarem fileiras. A batalha estava somente à espera que os chefes das duas hostes dessem sinal, depois de uma reunião breve para estabelecer os limites da chacina.

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- À carga!

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O sol que até então brilhava escondeu-se atrás de uma nuvem vagabunda; não queria ver o sangue que ia brotar das monas abertas pelas temíveis espadas de pau de vassoura, “compradas mas pagas” em troca de açoites que levaram por lixar a limpeza da casa nesse dia.

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Gritos ululantes, berros de dor, lágrimas, e muito choro a chamar pela mãezinha completavam o espectáculo. Eles eram saudavelmente semi-selvagens mas respeitavam o adversário.

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Tomás, o Grande Capitão dava ordens e mais ordens, mas ninguém escutava tal era a guinchadeira. Durante meia hora o mundo podia ter captado aquelas imagens e aproveitá-las para Campanhas de luta contra a decência a honra e a coragem – não havia golpes baixos nem estocadas pelas costas; cada um escolhera o seu adversário e com ele lutaria até que a morte os separasse.

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Desde o início, Cito fixara-se no criminoso das apalpadelas; ele era o alvo a abater, o guerreiro a aprisionar; também não seria difícil porque o miúdo parecia um “coninhas”.

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As clareiras iam-se abrindo com a as crianças agarradas à cabeça às pernas, e alguns à barriga, tal era o cagaço que apanharam quando viram o Bairro da Honra saltar a terreiro qual exército comandado por D Quixote Tomás e pelo lugar tenente Sancho Cito.

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Naquele dia “Ducineia” Rosalina veria a sua honra resgatada.

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Vitória foi proclamada quando o chefe do exército malfeitor declarou e rendição sem condições no momento que Tomás lhe colocara a bota no peito.

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Não havia mortos para sepultar, e as feridas curavam-se com as lambidelas dos cães de casa – poucos se atreveriam a contar as razões daqueles golpes superficiais, pois não arriscavam uns tabefes do pai ou um castigo severo da mãe.

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Seis da tarde, com um sol ainda sorridente, os guerreiros vitoriosos reuniram-se em casa do Tomás para decidir o que fazer com o prisioneiro, o único, pois os outros eram nobres como eles e por isso mereciam honra de derrotados.

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Jósito metera o facínora dento da casota do Leão, uma prisão condigna, larga e arejada, com grades de ferro para ele poder espreitar o sol a pôr-se, e encarregou o cão de ficar de sentinela.

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Saíram para a rua; as meninas e os bebés queriam saudar os valentes, e eles concederam-lhes essa honra. O tempo corria, as meninas debandaram para a companhia das bonecas, os bravos foram para casa que a fome de lanche apertava enquanto o estado-maior se reunia no descampado ao lado da casa de Cito. Tinham de tomar uma decisão; libertar o prisioneiro ou esperar que o viessem buscar! Não era fácil e as consequências eram imprevisíveis.

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Como responsável pelo aprisionamento Cito daria o desempate se acaso houvesse – tratava-se de uma decisão do colectivo, e Tomás quis saber a opinião do lugar-tenente e amigo, antes de tomar a sua decisão e proclamar o resultado da votação.

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Cito sentara-se em cima de um pneu e brincava com o ferro de jogar ao mundo; o seu semblante estava carregado sem rugas visíveis.”Bolas era só uma criança sonhadora que gostava de brincar com os amigos e as amiguinhas do bairro” – a maldade ainda não tinha aparecido, pois a evolução dos homens, por aquelas bandas, ainda se fazia por barco e sem “média”, mas a responsabilidade de ter de decidir não seria nunca atirada para os adultos.

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Meteu a mão o bolso de trás dos calções para colocar a boina na cabeça, e deu fé que a tinha perdido; perdera-a no campo de batalha caída no meio do capim.

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Desatou a correr até ao cenário da guerra, mas já não a encontrou; alguém vira a boina e chamou-lhe um figo – sentiu-se asfixiado quando percebeu que perdera um dos símbolos da sua meninice, um objecto tão importante como eram o pão e o leite; “Aquela” boina representava a luta contra a tristeza – a sua bússola, um pedaço de memória que não apagaria, e era também a mão e o afago materno. Era a sua protecção contra a vilipendia humana.

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Não chegara o tempo de a associar a outros romantismos que esvoaçavam além fronteiras, na distância, mas onde a luta pela dignidade já era servida com boina, na cabeça de “outro homem”.

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Regressou ao local de reunião – os amigos viram uma expressão inqualificável no olhar e que até então não conheciam – tão pouco sabiam catalogar. De pé, como permaneceria até que um dia a morte o deitasse, fita um a um os seus amigos; a sua vida mudara quando na sua mente algumas palavras que até então não tinham significado começavam a formar o conceito de ser humano, de homem.

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Periquito era um “criminoso” e estes deviam estar presos; tentara abusar da Rosalina, uma menina sã, por isso teria de pagar pelo crime de tentativa de “apalpadela infantil”. Cito iniciara o armazenamento de todos os princípios que definem a nata dos Homens, mas como criança, ainda não conseguia distinguir uma brincadeira de puto parvo com a seriedade de actos condenáveis; mas tinha de decidir naquele momento, e decidiu.

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Estendeu, silencioso, a mão esquerda a Tomás, a mão do coração a mão da amizade conquanto na direita, a mão que construiria com verdade a sua infância, em punho cerrado, guardava a chave da casota do Leão.

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- Que o venham buscar, foi feito prisioneiro num campo de batalha...

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Tomás acenou com o dedo para baixo em sina de prisão decretada. Se houvesse problemas ele soltava o prisioneiro; não vira que Cito guardara a chave da justiça no bolso, onde até aquele momento, sempre guardara a boina, quando deixava esvoaçar livremente os cabelos negros soltos ao vento.

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À hora de jantar tocaram à porta, e Mariquinhas foi atender – era um senhor que acompanhava Tomás. Depois de breves palavras este último entra na sala e faz sinal a Cito, que lhe responde:

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- Está em cima da mesa do meu quarto.

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O prisioneiro tinha cumprido a pena; o pai viera resgatá-lo, depois da honra de Rosalina ser reposta.

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