domingo, outubro 23, 2016

LENTES FUMADAS

DETRÁS DAS LENTES FUMADAS 
(poema transformado em conto)


Por detrás das lentes fumadas e grossas percebeu-lhe um olhar carregado de angústia, franzido e arcado sobrolho e na boca traços de amargura recente. 
Rodada paulatinamente a cabeça solta encabeladura espraiada ao vento espreitavam fios brancos e naturais, código de idade e inquestionável marca sofrida de uma pérfida existência. Cruzado os olhares sem recriminações resguardou-se decente e cautelosa dado o tempo tê-la ensinado que os verões, mesmo alegres, não raras vezes deixam nos anos irremovível mossa. Liberta a mente sorveu um trago de café e num ingénuo passar de língua aos lábios observou-lhe, pelo canto do olho, um sorriso de gozo. Saindo da esplanada com soberba altivez penetrou-o com um último aceno e incapaz de suster, percorrido por uma erótica horripilação, instalou-se o desejo de a possuir talvez sentindo que nunca mais a voltaria a ver.
Chegado por aquecer fresco Setembro afagavam-lhe o rosto brisas com destino trazendo recados doutras longitudes ventos duma desgraça anunciada entregue em mensagens carregadas de avivado luto sem remetente mas com destinatário colectivo. Evitados reparos ou dedos em riste aplacou, apreciando passageiras nuvens, dores de sulcos traçados no velho alcatrão que sugeriam rodados de Jeeps nas picadas e quase confundido com o passado perdia de vista a mulher pela distância, ao compasso de uma sinfonia moderna; suspirando deixou tombar a cabeça imaginando-se de novo soerguido. Deleitava-se a caneta pelo papel deliciando-se com meiga e suavizada aparência, quando sentiu, diria num toque de libélula, um sopro sensual e meigo contendo inesperado convite. Esbelta, sorriso carregado de mel com um não sei quê de gindungo, toma-o pela mão e sem comentários desnecessários conduze-lo pelas alamedas do sonho. Pelas arestas da janela do quarto do hotel corria uma sonata sem notas ou pauta alando ao puro ulo do querer concretizado. Volvidas horas, sem nomes ou apelidos, entre beijos a roçar os lábios, entrelaçados os dedos apreciou fotogénica beleza num corpo que se fazia adulto na exacta medida que os orgasmos mostravam ingresso na arena da fantasia, e cerrados os olhos, comprimida as pálpebras deixou-se acorrentar pela malícia duma virgem de signo.

No relógio do salão que antecedia o bar os ponteiros dançavam sem acordes a valsa da meia-noite; não distante esperava-me a solidão. Altivamente, solto ao alto cordas da garganta, num canto em voz rouca e arrastada, não raras vezes sentindo chegada a velhice com feridas saradas num corpo quase exangue e já cansado da vida, servido pela má sorte e de amigos falsos com um sorrir enganador escrevi estas linhas pensando que me fazia escritor para toda a eternidade.


Adolfo Castelbranco Oliveira
(Cito Loio)
24-25/09/2016

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