sexta-feira, outubro 03, 2014

Quero morrer escrevendo





VALOR 
DA
SOLIDÃO




Sumido ouviam-se notas dum fado, o trinar da guitarra desafiando acordes dum dedilhar de viola sem fazerem esforço para abafar a voz esganiçada duma grande fadista desconhecida com palavras dum poema sobejamente conhecido passado constantemente nas emissoras de rádio nacionais e também nas privadas intitulado “Que Deus me perdoe”, e bem que ela podia pedir perdão à divindade pelo assassinato vocal embelezado por grunhidos e desafinações.
Contínuo à casa donde surgiam os acordes agoniantes, um sexagenário sentado na sala da sua minúscula casa teclava no computador palavras que deviam servir para construir um tratado sobre algo que dificilmente seria matéria fácil para quem não tivesse experiência, e que traduzia só por si um desafio que o próprio auto impusera registando um nome para o documento de «Valor da Solidão», inequívoca confirmação do quanto representava a proposta em termos genéricos tal estado.

(Portugal Outubro 2014
Quanto vale a Solidão?.
Antes de se iniciar a leitura do que refere o mote e sobre uma visão sociológica se observado no universo das pessoas que rodeiam um indivíduo propõe-se a introspecção afim de determinar o seu enquadramento no segmento dos seres solitários, independente de estar ou não rodeado por familiares amigos, membros de claques clubistas ou espectadores, no cinema ou quiçá numa bicha à porta do fundo de desemprego de uma qualquer dependência da Segurança Social. Cruelmente a solidão é ainda a audição dum choro de bebé num cabaret para adultos durante uma sessão de streep tease, ouvir as ondas a rebentarem na orla marítima enquanto se viaja de avião a 12 mil pés de altitude o sussurrar do vento num mergulho com escafandro, ou até assobiar a marcha fúnebre num desfile carnavalesco no sambódromo do Rio em 3ª feira de Carnaval. Comummente estes estados/estágios de alteração psíquica são quase sempre conotados com demência ou febre 'psicótica'; se assim não fosse eu próprio estaria internado num qualquer hospital psiquiátrico em vez de escrever romances contos ou artigos sobre patetices politicas. Evidente que a vivência da solidão por dentro destroça corrói debilita, mas por vezes permite encontrar-se nela uma força adicional e armas por inventar e combater patamares superiores de ansiedade, tendências suicidas ou em última instância a propensão para cometimento de actos que a lei considera crime.
Mas afinal quanto vale a Solidão?...)

Súbito o homem e escritor suspende a tarefa a que se propusera ao dar conta do Silêncio Total que imperou na sala. A TV não funcionava, a telefonia estava sem pilhas, a cantoria na vizinhança terminara, o computador queimara os cristais do ecrã, a luz da sala fundira, o candeeiro da rua vandalizado, a cadela da vizinha não ladrava e a dona também não, os carros não circulavam face ao jogo do Porto x Shakhta e o do Sporting x Chesea , transmitidos pelas Tvs, os filhos ausentes, as ex-mulheres parte duma história vivida, as namoradas tinham optado por outros namorados, e ele enfrentava uma vez mais a Solidão Absoluta. Com esforço levantou-se, meteu a mão ao bolso, contou os últimos 55 cêntimos que restavam e sorriu.
A pouco mais de 250 metros havia um bar que servia café de mesa a esse preço e ainda oferecia dois plasmas para a velharia apreciar os seus clubes jogarem nas mais diversas competições. Escolheu uma moeda de 0,20€e decidiu pontapear a sorte e deixar as faces da moeda decidirem sobre cara ou coroa atirando a moeda ao ar; se saísse cara ia ver futebol em Solidão Assistida, mas saindo coroa abraçava a Solidão Sepulcral.
Quando esta caiu no chão definiu para o valor da Solidão Assistida 0,55€ preço que pagaria pelo café. Saiu de casa batendo a porta sentindo nos ouvidos um zum zum atordoante que o impediu, ao atravessar a rua, escutar o rodar dum carro a alta velocidade e faróis apagados que o colheu. O condutor tinha definido 0,20 € o preço da Solidão. Dois dias depois, dia um e primeira 4ª feira do mês de Outubro procedia-se em lugares diferentes aos funerais de dois homens que podiam num estudo científico constituir-se como exemplos vivos para definir o que era a Solidão.

Reli este documento duas vezes e exclamei: «Bom, ainda tenho 0,80 € para tomar uma taça de vinho maduro tinto»
A solidão por vezes veste o hábito, eu por hábito já me acostumei à cor dum pijama chamado solidão.

Inácio
(Adolfo Castelbranco Oliveira)

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