sábado, agosto 24, 2013

Nuvens avermelhadas

NUVENS AVERMELHADAS


Sentado numa laje sobranceira à maior fenda da Tundavala a cerca de 1.200 metros acima das águas do mar sabia que para lá do que a vista alcançava descaído sobre a esquerda havia um deserto onde a natureza depositara uma espécie rara, única, denominada Welwitchia Mirabilis, encostado à cidade de Moçâmedes onde tantas vezes se deleitava nas praias quentes e de águas límpidas. Nas costas ficava a Huíla a Nª Sª do Monte, a piscina de água corrente o céu azul e um certo friozinho nas noites de cacimbo.

Rolou a cabeça a cabeça mais para norte e quase pressentia o barulho da capital da província, a azáfama do porto e do aeroporto, a vida asfixiante do vai e vem constante de veículos, bares nocturnos. Do outro lado do atlântico havia um país que não conhecia mas cheirava que quem lá viva não era de fiar, tudo por meras conversas escutadas entre camaradas – ao contrário gostava das gentes daquela província que adoptara para ser a sua 2ª terra. Sob o seus pés a linha de caminho de ferro, o serpentear da estrada o mato, e a selva desconhecida. Estava de facto em África.

Gervásio Sério, casado, pai de uma menina de com 2 anos, natural duma pequena aldeia do distrito da Guarda do Portugal Imperial fora incorporado em 19 66 para combater os terroristas armados até aos dentes e que se tinham revoltado contra a pátria opressora com a ajuda estrangeira, mas por graça divina tinha saído ileso de todas as saídas para zona de combate – assentara praça como soldado raso que as suas habilitações a mais não permitiam – De regresso ao continente de pois de 48 meses de serviço militar obrigatório, restava arranjar emprego pago a preço de avo, emigrar a salto, carregar baldes de fezes trabalhando numa qualquer Junta de uma qualquer cidade do interior. Não ponderara voltar a Angola mas com o decorrer do tempo e as dificuldades de obter um modo de vida que se adequasse às suas aspirações, esta opção começava a germinar.

Com a morte do ditador as coisas pareciam menos negras que no tempo em que por lá andara envergando a farda do exército, por isso já não excluía o embarque num paquete ou mesmo nos modernos Boeing da TAP – e que essa aventura terminaria por dar um futuro risonho para si e restante família – daí estabelecer-se numa povoação do interior era já uma certeza, abraçando o negócio de comercio, bar e mercearia e ir crescendo aos poucos, já que o pessoal que conhecera anteriormente e do tempo da guerra para além de serem bons pagadores aliavam o facto de serem bons compinchas nas noites de sexta e sábados e a cor nunca for barreira à amizade criada com alguns. Da decisão à concretização passara-se 2 anos. Estava-se em 1972, malas aviadas e despedia-se da mulher e restante família em Lisboa embarcando do  porto Alcântara rumo ao hemisfério sul. – ia à frente para preparar cuidadosamente e sem sobressaltos a posterior ida da mulher e filha. Apesar de humildes os pais garantiam que nada faltaria a nora e neta, e ainda o ajudaram com algumas despesas extras e isso dava-lhe tranquilidade

Gervásio era homem de trabalho e aos 27 anos nada lhe metia medo. Rapidamente, chegado à província da Huíla procurara com a ajuda de um ex-camarada de armas encontrando um sítio e instalações que agradavam de sobremaneira sabendo que o início de negócio seria facilitado por alguns conhecidos e malta que se dedicava ao comércio da transacção diamantífera pela fronteira do Namibe e outras que se desconheciam à data.

O ano fora de facto fantástico razão para escrever umas magras linhas à mulher a contar o sucesso e que se preparasse para conhecer África – considerou-se um homem de sorte, ganhara a aposta, tinha posto de parte algum dinheiro e fecharia o estabelecimento no fim de semana seguinte não sem antes deixar os clientes fornecidos do que necessitassem. Marcava o calendário 1 de Dezembro de 1973 quando se preparou para se deslocar à capital afim de esperar a família vinda da metrópole – a alegria era extensiva a todos na povoação especialmente por parte de Manhê Cavaigolo e Zumbi Caxipede, chefes de famíla que viam na vinda da senhora do amigo oportunidades para que as suas mulheres aprendessem a cozinhar uma coisas boas e outras lides importantes para a casa e útil no futuro – gostavam de Gervásio, conheceram-se na tropa e mesmo que não fosse de fiar os anos de BI eram da mesma idade.

Partiria para a capital na manhã seguinte, razão de ter tirado a tarde já depois de encerrado a loja e fora espairecer para a Tundavala. Sonhava como qualquer homem, marido e pai extremoso com o reencontro, por longa ser sempre a ausência – o0lhando o céu percebeu umas nuvens pequenas que não seriam expectável naquele dia e naquela altura do ano com apenas 2 meses e ½ de verão face à limpidez com que se apresentara o dia sobretudo ao bater das 11:00. O que mais chamou à atenção fora a tonalidade cinzenta avermelhada das nuvens, e o desenho que faziam entre si, parecendo as ferramentas das ceifeira alentejanas e dos martelos dos ferreiros, mas atribuiu tal facto à alegria e aum copito extra a que se dera ao luxo, e que algum cliente acabaria por cobrir o prejuízo.

Comprara um carro novo, em 2ª mão, num stand de um amigo recente mas que eram da mesma zona de Portugal, tendo este condescendido receber os 50 contos em prestações sem juros nem empréstimos bancário, bastando-lhe a palavra, mas nada disto dera a conhecer à família. A carta tirara-a felizmente como militar poupando uns contos extra numa escola privada e arriscando-se a pagar dobrado se chumbasse.

Rápido chegaria o Natal; _ seria uma festa. Dona Emengarda Séria depressa se adoptara aos trilhos, à terra batida, às picadas dos mosquitos e à conversa sem fim de Sizémia ‘Juta’ Cavaigolo e Périódica Caxipede, que falavam pelos cotovelos apesar da maior parte dos casos não perceber patavina do que diziam. Passagem de ano, garrafas para comemorar e ei-los em 1974. Chegou Fevereiro, Carnaval, 4ª de cinzas, festa, dança, suor, que o calor apertava e a temperatura ainda subiria mais até Março prolongando-se pelos meses de Abril e Maio. Era de aproveitar para uns mergulhos de água salgada.

Emengrada, boa esposa, incentivara o marido a mandar vir os sogros, dado que os seus pais tinham falecido, e até podia ser que montassem uma pensão. Ela apenas tinha uma irmã mais velha e solteira, e não descurava a hipótese de a ver acasalada com Antero Silva Penado, um dos melhores clientes e que levava um táxi por conta própria e que podia juntar os trapinhos com a mana.

Veio a Páscoa, as amêndoas, amigos a crescer negócio a florescer e o que pensara concretizar-se ia para a 2ª metade do ano. Metera a irmã trocando correspondência com Antero e o resultado seria casamento por procuração.
No dia 24 de Abril de 1974, jantavam em casa dos Sério a maior parte dos amigos arranjados por aquelas bandas entre eles os mais novos, a família Vissorino e a Silvano. O casdal iria anunciar a chegada dos pais de Gervásio a irmã de Emengarad futura esposa de Antero, e a grande novidade – a gravidez de Emengarda já com 2 meses – o bebé viria no bico da cegonha sem saberem se menino ou menina. Périódica Caxipede, fez de imediato uma reza, deu três voltas à mesa e exclamou sem margem para erro. «Pela curva da mama direita da prenha é minino!». Palmas para a macumbeira que não cabia de inchada dentro dos panos tal o contentamento.

Em Março de 1975, Gervásio e Emengarda carregavam uma menina de 4 anos aproximadamente pela mão, e um bebé ao colo com pouco mais de 5 meses, e pretendiam despachar alguns caixotes para Portugal contendo coisas pessoais, entre elas fraldas, bibes, e roupa de bebé de cor azul – o homem ia deixar a salvo a família, longe dos conflitos que se agudizavam, mas regressava para continuar o negócio, deixando a esposa e filhos em casa dos pais até que a situação acalmasse e desse garantias de haver paz medicamentos e alimentação para os filhos. Regressava à Huila 15 dias depois de ter embarcado.

Na 1ª terça feira do Outubro já quente, oficial de serviço ao terminal de carga do aeroporto atendia um homem com ar abatido, barba por fazer, um pouco sujo até. Queria embarcar alguns pertences para Portugal, coisitas sem valor mas que eram sua e ganhas com honestidade. Contou ao oficial à laia de descompressão meio lamento meia raiva quase a roçar o ódio sobre o que lhe acontecera, e ao vexame que passara ao sair do aeroporto da Portela onde fora acusado de de racista, explorador, e outros insultos que jamais pensara escutar, sobretudo de familiares afastados. O oficial, depois de pesar as caixas, pediu para que o acompanhasse aos serviços da alfândega e depois teria de cumprir as formalidades para o embarque. Aproveitando a conversa adiantou que não desse trela a certa malta e que o importante era a família e ele estarem juntos e bem e que por estranho que parecesse a cara dele não era de todo estranha não se recordando donde nem de que altura e sossegou-o

- Também não será por isso que muda o atendimento!
- Estive cá com a minha mulher e dois filhos e foi o senhor que nos atendeu na altura…
- Possível mas sabe são milhares de caras que passam por este aeroporto desde o início da debandada!
- É natural que não se lembre – vai ficar? – se partir para Portugal procure-nos aquilo não é assim tão grande!
- Obrigado vamos preencher a papelada e como deve saber preciso do nome de quem levanta os caixotes no destino…
- Gervásio Sério!

Já se afastava em direcção ao edifício de embarque quando ouviu o oficial chamá-lo.

- Senhor Sério… esqueceu-se da carta de porte!



Fim

Sem comentários:

 
Web Analytics