terça-feira, agosto 27, 2013

Cadeiras do Poder


CADEIRAS DO PODER




António Oliveira Botas andava numa roda-viva com o negócio. Lia e relia detalhadamente os dados fornecidos pelos assessores e não encontrava solução para o que pretendia. Se por um lado gostasse de dar um pouco de folga aos trabalhadores, sentia que fosse qual fosse a decisão que tomasse passaria por antidemocrática e haveria sempre contestação se bem que ousassem manifestar-se publicamente. Não lhe restavam dúvidas que o seu tempo estava no fim mais pela idade que mentalmente; não tinha filhos a quem deixar o império e naquele negócio não havia subidas ao trono por isso decidira deixar tudo ao Erário e à Misericórdia – em quem mais confiava, Drano Moreia no mas achava que ser do pior o melhor por isso remédio era não entregar nada a ninguém enquanto estivesse vivo.

Pelas suas contas em Portugal vivia-se do negócio com as províncias não obstante exportar-se para outras latitudes alguma coisa mas o grosso era a circulação interna sobretudo para as áfricas daí não haver hipótese de abdicar de manter o negócio com essas partes do mundo português – por outro lado precisa de matérias-primas e havia-as em abundância por lá. Toda a sua estrutura estava montada em cima duma espécie empório lusitano e tudo se produziria a médio prazo sendo quase a pátria auto-suficiente, faltando resolver as desavenças com o resto do mundo que cobiçava o que era deles não para desenvolver a terra mas para sacar quanto pudessem. A guerra que o seu país mantinha era uma espécie de jogo de monopólio tirando a Guiné que por entendimento de alguns sábios não se poderia entregar por causa do efeito dominó, mas no entender de Botas era falácia e até convinha aos militares manterem certas comissões e desculparem-se com a Guiné para manter os privilégios noutras partes.

-Tenho de desfazer do negócio guineense ou arrisco a afectar tudo o resto mas vou com calma chegado o momento entalo os guerrilheiros e acaba-lhes a mama

Percebera por exemplo que alguns dos seus trabalhadores depois de terem feito uma comissão pediam para regressar às províncias o que nem era de estranhar. Outros ares outras oportunidades subidas sociais, mais dinheiro enfim um futuro mais risonho e ele também aproveitava o facto para desenvolver mais o negócio e tornar mais sólido o empreendimento. Não tinha problemas com chineses japoneses coreanos ou indianos se bem que eram em demasia mas enquanto não fedessem tudo bem.

Difícil, eram os americanos com a mania de serem dono de tudo e de todos. Volta e meia tinha de os por no seu sítio ou acabava o negócio com eles – ficariam a perder por isso se tivessem juizinho safavam-se. Quanto aos sovietes nem se dava ao trabalho, pois eles não chateavam muito desde que andassem a expor bandeiras vermelhas e a cantar Kalinka-Malinka; preocupante, eram os próprios portugueses e a sua dose de inveja e dor de cotovelo sempre dispostos a lixar-lhe o negócio. Quanto aos Franceses sabia que o faziam pelas costas na Guiné, mas aquilo era mosquitada e ninguém estaria disposto a comprar fosse o que fosse. Os Italianos era gente pacífica desde que cantassem umas napolitanas e os espanhóis não chateavam porque ele não ia ao baile com flamengos – o resto tranquilo, e tanto, que até nem chateavam em Timor e os chinos estavam satisfeitos com o seu negócio em Macau.

O suave bater na porta do escritório chamou-o à realidade; era a empregada doméstica, a única que se lhe conhecia, em quem confiava cegamente e pagava o ordenado do seu próprio bolso porque o dinheiro da empresa era para a empresa. O ordenado era pequeno mas ele poupava noutras coisas e por isso podia dar-se a certas mordomias tais como ter uma mulher-a-dias, e ainda por cima a mulher era uma espécie de enfermeira, farmacêutica, contabilista doméstica, recepcionista, além de uma das melhores bisbilhoteiras privadas.

-Entre boa noite
-Bom dia Dr repare que já são 6:30 trouxe o pequeno-almoço mas vejo que ainda está de fato!
- Já é manhã! Veja se tem o salão de reuniões pronto que às 9:00 tenho aí o pessoal.
-Não se preocupe está tudo pronto e também tem uma garrafa de Porto para os senhores...
-Se quiserem beber vão ao bar do João Juros assim sempre lhes dão algum a ganhar e bem precisa que a mulher está entrevada.
-Tenho ajudado a dona Felicidade sempre que posso mas sem prejuízo para o doutor!
-Faz muito bem é o princípio da solidariedade enfim do estado social...
-Dr António no outro dia aquando fui Às compras parei no bar para comprar uns bolinhos tradicionais para o filho do jardineiro o Serafim Rosa e...
-Fez muito bem e meteu na minha conta?
-Paguei do meu dinheiro doutor!
-Fez mal depois lembre-se de lhe dar o dinheiro que gastou!
-Se assim desejar mas escutei uma conversa estranha de pessoas que falavam de um acidente preparado qualquer coisa a ver com a queda da cadeira do poder o velho bater a bota e não me agradou o aspecto dos homens...cheirou a maldade
-E que mais escutou?
-Nada baixaram o tom de voz quando entraram umas pessoas que não conheço!
-Não se preocupe há muita gente por aí sedenta da cadeira do poder e de qualquer maneira grato pela preocupação e lealdade.

António Botas não dera conta das horas passarem – começara a trabalhar por volta das 22:00 no escritório particular. «Tenho de arranjar um escritório com janela para aproveitar a luz solar e também a do candeeiro da rua assim sempre poupo mais algum e posso desenvolver outras áreas de menor rentabilidade» Homem experiente sabia que uma reserva do vil metal era importante em tempos de crise e ele passara uma das mais violentas desde o início do século. A conversa com a empregada ficara no limiar do subconsciente – algo lhe dissera que havia de facto marosca no ar mas também não era coisa que não estivesse habituado mas era tempo de descer e receber os colaboradores. Quase todos estavam de acordo com fechar o negócio na Guiné e concentrar esforços noutras estruturas, fazer canalizar o pessoal para outros centros de produção, salvo um dos presentes. António escutava atentamente as posições.

-Caros amigos aquela coisa é tão pobre pantanosa miserável que ninguém a compra mas serve para distrair atenções justificar algumas despesas e poupar mais noutras locais...reparem que estamos em pleno nas outras províncias a crescer a olhos vistos ao ponto do mundo andar cheio de inveja e a conjecturar nas nossas costas...a minha opinião é de manter!

Silvito Punha intervém

-Não haverá por aí influência dos ditos da s chefias militares Drano Moreia?
- Completamente e´ uma opinião pessoal e reflectida.

Com o prolongar da reunião acabaram rendidos à opinião de Moreia, e que agradou a Oliveira Botas ver o pessoal de acordo terminando com a reunião. Correra como previra e para alguma coisa havia de servir a reunião que particularmente tivera na véspera com Drano Moreia. Pelas 14:37 a oficina de marcenaria “TudoRápido Ldª” entregava a cadeira da secretária do escritório da empresa. Botas teve a sensação de haver ali algo estranho sobretudo pela rapidez com que a entregaram e sabendo a oficina que só pagava no fim do mês e chamou a empregada.

- Marialisa viu quem trouxe a cadeira?
- Vi sim doutor…
- Fale criatura que sabe que eu não sei?
- Um dos homens era o mesmo que estava na loja do João Juros…
- Muito bem diga ao filho do Rosa que chegue cá!
- Sim senhor Sr. Doutor

Botas continuava a matutar na cadeira. Adivinhava borrasca mas como não pescava nada de marcenarias era melhor ser o filho do jardineiro a ver a coisa que o miúdo era fino e andava sempre a consertar coisas na arrecadação. Após 10 ‘ de espera o rapaz batia à porta

- Entra Gálio Manuel
- O doutor mandou chamar?
- Sim…sei que és um artista nestas coisas de pequenos arranjos vê se esta cadeira está segura e se foi mesmo arranjada

Gáudio ficou nas nuvens aos 14 anos até porque elogio patrão era “um elogio do patrão” e rematou «O senhor doutor pode ficar descansado vou vê-la da cabeça aos pés e por acaso escutei a senhora Marialisa falar com o meu pai sobre uma conversa esquisita do bar do Sr. Juros» - De imediato o rapaz pegou na cadeira e virou-a do avesso rodopiou-a pressionou-a enfim coisas que só os miúdos podem conceber acabando por confirmar que nada de estranho se passava e que a cadeira estava perfeita.

- Muito bem diz à Marialisa para te pagar o serviço.
- Não precisa…
- Quem sabe se precisa és tu quem decide se dá sou eu por isso vai ter com ela

António Botas não via mas adivinhava a cara de contente do miúdo quando recebesse 3 escudos extra já que nunca lhe dava menos por cada serviço. Os seus concorrentes achavam que era sovina mas não se importava; havia quem gostasse dele mas pelo menos Gálio Marialisa e Serafim Rosa tinham-lhe respeito e amizade. Estava contudo sem pachorra para trabalhar; não dormira, a reunião fora cansativa e a história da cadeira e da conversa no bar do João Juros mexera com ele. Decidiu subir até à sala de estar avisando a empregada que desejava não ser incomodado até à hora de jantar. Já no piso superior olhou para o calendário que marcava o mês Agosto de 1968, sentou-se numa cadeira do tempo da rainha D Amélia ligou a velha Telefunken Jubilate 1651 a válvulas, sintonizou a Emissora Nacional e fechou os olhos deixando-se embalar por Rui de Mascarenhas a cantar Encontro às Dez.

Súbito a música foi interrompida por uma voz grave, dir-se-ia chocada, que anunciava ter sido sua excelência o senhor doutor António de Oliveira Salazar vítima duma queda de uma cadeira que provocara um acidente vascular cerebral sendo Sua excelência o Senhor Presidente do Conselho de Ministros transportado de urgência para o Hospital...em estado físico e mental crítico.

António Botas ficou siderado e pregado na cadeira exclamando «Que raio de coincidência!», enquanto que no bar de João Juros, de notícia em notícia, o silêncio imperava deixando toda a clientela sem fala, à excepção de uma mesa com 4 homens que emborcavam copos de vinho carrascão à mistura com ‘à nossa’. Um desses homens fora o que levara a cadeira a casa de Botas, percebendo-se no rosto um sorriso de vitória enquanto comentava «Estava a ver que o velho não ia desta para melhor»

A notícia espalhara-se por todo o Portugal, do Minho a Timor, provocando uma onda de consternação e silêncio que entrou pelas Nações Unidas dentro – do polo norte ao sul, do sol nascente ao cair da noite, para lá das ondas hertzianas o mundo estremeceu. Era patente viver-se uma internacional paz podre e a derrocada ainda não se dera porque, sentado numa cadeira, no palácio de S. Bento, na capital dum país à beira mar implantado, existia um povo governado por um homem tenaz que contra ventos e marés mantivera o mundo em equilíbrio evitando que os facínoras tomassem definitivamente conta do planeta.

Por África o incidente e as suas possíveis consequências geraram pânico até entre os guerrilheiros denominados terroristas. Uma coisa era lutar contra o ditador – contra um exército que até tinha manos nas suas fileiras e falavam a mesma língua – outra, contra quem não conheciam e que por certo os levariam à carnificina numa luta sem tréguas e sem respeito pela condição humana até à escravatura final perpetrada pelos senhores da ditadura global. O mundo começava a mudar e Oliveira Botas incrédulo. Que se teria passado, acidente ou sabotagem. Fosse o que fosse Portugal iria mudar e ele só não sabia se para melhor.

António Botas sentia-se velho e cansado; tinha 81 anos e deixara o negócio nas mãos de Drano Catano o único em quem confiava se bem que não muito. Era verão, dia 27 de Julho de 1970, chamou a fiel empregada e pediu para preparar uma camisa branca, um fato cinzento-escuro e uma gravata preta. Preparava-se para ir a mais um funeral.

FIM

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