segunda-feira, agosto 29, 2016

DIA EM QUE MICKEY DESAPARECEU




 [Ofereço este conto a José Luís Caldeira Fernandes (um amigo da facebook) que afinal depois de breve troca de mensagens concluímos que já nos conhecíamos há mais de 3 décadas, da cidade de Elvas, e por curiosidade, até moravamos no mesmo prédio e piso. 
Quando a FB voltou a publicar in mmemory o conto ESTRANHO MAS ACONTECEU ofereceu-me um rasgado e inesquecível elogio. Decidi acaso escrevesse  um novo conto lho dedicaria.
Para JLCF um grande abraço e que nunca lhe aconteça o que aconteceu ao Mikey]

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DIA EM QUE MICKEY DESAPARECEU


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Apanhou, de saída, um dos múltiplos livros de banda desenhada atirados despreocupadamente para cima da larga estante do escritório, ilustrações e narrativas, destinados a momentos de ócio, mas que infelizmente nem todos apreciavam optando por leituras intelectualizadas de Liev Tolstoi, Arkady Kaidar,Nikolai Gogol, Anton Tchekhov, e outros ainda que se  deleitavam com John Steinbeck ou Harper Lee. Neste campo, para além dos portugueses, há algum tempo colocara no fundo da prateleira Albert Camus, Thomas Mann, Alexandre Dumas ou mesmo Antoine de Saint-Exupéry, que para príncipe bastava os idiotas a mandarem piropos às mamalhudas que serviam às mesas nos Pub's e Cabarés normalmente situados em ruas ou locais escolhidos a dedo.

Antes de se fazer ao caminho olhou de soslaio o  calendário que marcava o dia 26 de Agosto de 1975 e reparando que o livro que pegara respeitava a um conto com Mickey, um dos personagens mais famosos de Walt Disney. Entretanto assomou à varanda do 4º andar do prédio da Cuca, contornando mentalmente o Largo Maria da Fonte  e distraídamente acenou um vulto que estava parado frente ao portão principal do mercado Quinaxixe. Rodando os calcanhares voltou para dentro da habitação, claro que a varanda fazia parte da casa mais voilá, afim de ver se tudo estaria desligado, e sacou as chaves do carro que tinha deixado na mesa de centro da sala de estar, saindo de imediato de casa não sem antes verificar se tinha fechado a porta à chave. Claro que estes pormenores são só para encher páginas, aliás como faz a maior parte dos escritores premiados, daqueles que gastam 10 folhas para explicar ao leitor que o criminoso subira 23 degraus para aceder à porta da vítima, e constatar-se no final de 10 minutos de leitura que o "futuro" morto não estava em casa, mas como não sou expert em retórica basta-me referir que o personagem principal chamou o elevador para descer ao rés-do-chão, opcção tomada, em vez de utilizar as escadas, dado o prédio ter apartamentos duplex e isso representar uma tarefa de descer 8 pisos e a perguiça (ok está mal escrito mas não me dou ao trabalho de verificar na google como se escreve Preguiça) últimamente andar no Ginásio e estar logo pela manhã fortíssima. 

Já na rua, quedou-se por breves instantes indeciso entre ir a pé ou de carro até à esplanada da Apollo XI, bar situado do outro lado da rua, bastando 1,30 minutos para atravessar o parque privado de estacionamento do prédio e a avenida dos Combatente para sentar o rabiosque e deliciar-se com Coca-cola e uma pedra de gelo. Para que ninguém fique na dúvida, foi a penantes, e a razão é simples: na véspera deixara o bólide estacionado em frente ao prédio onde se situa o bar. Um dos costumeiros gladiadores do Vodka com laranja comprara um BMW 2002 novinho em folha e desafiara o pessoal a curtir a noite pelas "boites" da city, aproveitando para meter inveja ao pessoal. 

Sentado a uma das mesas mais próximas da rua, deliciado com a coca, bebida evidente que dessas coisas não consumia - às vezes sacava uma liambazinha, mas até isso já passara à história -  começou a ler o livro quee continha não uma mas 4 histórias aos quadradinhos - e para não pensarem que estou na tanga a história começa com  Minie a entra em casa reclamando da trabalheira de ir às compras que para além de mais cansativo não se recebe e gasta-se sendo surpreendida por uma chamada do Mickey no gravador de chamadas, mostrando-se aborrecida por verificar que este estava cheio.

- Olá Minie...É o Mickey vizzz bzzz que ruídos são estes... e passando a outra gravação - Olá Mnie é a Clara-Bela... e entre uma e outra chamada a voz do Mickhey - Pchhhh.

Embrenhado na leitura não deu fé da chegada de Janino que se sentou sem um posso, e a escasso metro e meio atirando o maço de cigarros e a carteira de fósforos para cima do tampo ao mesmo tempo que estalava os dedos e esboçava um bocejo.

- Olá mano que lês algo sobre coitos ou andas outra vez numa de Immanuel Kant ou Jean-Jacques Rousseau
- Nada disso ano a instruir-me com coisas mais sérias...vê
- Walt Disney estás a ficar pirado ou andas a engongar erva
- Nada disso Janino apenas que ler essas obras cansam é só...letras negras sobre papel branco sem imagens é fastio completo
- Mudando de tema Gali onde vais logo à noite
- Ainda não decidi talvez vá passar parte da noite até à meia-noite em casa do velho ando ultimamente muito por fora e a minha mãe não merece tal ausência
- Acho bem mas é Sábado, dia de Flamingo do Quatro ou uma de penetra na festa da Milita que dá uma farra de garagem
- Se decidir ir ligo-te 
- Tchau mano
- Vai Jani.

Continuou a desfolhar o livrinho ao mesmo tempo que 3 mesas mais adiante um grupo de garinas riam a bandeiras despregadas por causa dum motociclista que no intuito de dar uma de corredor de fim de semana espetou-se ao comprido contra uma carrinha carregada de bananas, sendo maior o alarido e prejuízo material que os danos físicos do motoqueiro. Na verdade uma delas lá ia, entre risadas, dando uma espreitadela para o "Je", coisa que não o ralou, tanto mais que o pito era, mesmo sentada, um bom naco de carne virgem - penso - para não fazer juízos incorrectos, mas que se comia com ou sem hábito comia-se e disso não lhe ficaram dúvidas. No entanto fazia-se tarde e o amigo Gueiró não havia modo de dar à costa e a paciência começava a esgotar-se por ter de pegar ao trabalho precisamente às 13 h - havia obrigações a cumprir e não lhe pagavam para sornar ou ficar no paleio. Evidente a razão porque esperava por ele é algo que não interessa para aqui mas e segundo confidencia, não se tratava de negócio de neguinhas nem prá veia ou charros do sul, mas que fazia jeito falar com o tipo isso era certo e afirmativo.

Nada feito, chegava a hora de zarpar, olhar convidativo com um passear de língua ao bijou, uma saída quase acompanhada com os primeiros acordes da Marcha Triunfal de Verdi e um pensamento maldoso do tipo "a gaja tá no papo", como se tal coisa fosse o pão meu de cada dia - alguns escritores faziam já um aparte para explicaram como comeram o churrasquinho levando o leitor a sacar uma de rua da palma nº 5, mas cá o rapaz não é desse tipo de contador de balelas - daí se declara que nunca mais a viu, ou pelo menos julgo que que não a viu - pelo menos não tenho memória de me terem contado tal - e largando pela avenida fora deu asas ao pensamento repassando in memory a semana anterior, duríssima. Uma constante correria entre o emprego e os bairros circundantes, viagens onde não lhe apetecia  ir, mas o dever clamara mais alto que a vontade de bardinar.

Rolava a viatura, rolava a mente, rolavam outros e sentido contrário e 17 minutos bastaram para chegar aos estacionamento privado de empresa. Carro fechado à chave não fosse  diabo tentar algum amigo-do-alheio e 5 ou 6 horas depois estar lá apenas o lugar do estacionamento. O escritório como sempre, atulhado de papelada, pedidos e cunhas, insinuações e coisas do género. Preparado o dossier para o dia carregou no pedal e, 4 horas após a chegada estava com tempo de tomar uma café. Afirmo que 3 minutos sobraram para se sentar, novamente, e pedir um café sem natas e um copo de água, preferencialmente natural. Enquanto esperava repassou a sala dando conta de haver apenas 3 pessoas - o negócio não deve ir lá muito bem, permito-me que tal escapasse em surdina. Satisfeito com a prontidão do serviço, o sabor do café, a paz que pairava na sala, pago o devido voltou para o trabalho. Pouco havia a fazer o que proporcionou o nosso diligente e produtivo trabalhador largar a labuta à hora que previra dirigindo-se para o carro e já sentado, reclinando ligeiramente o assento, fechou os olhos. Estava definitiva e inequivocamente fatigado, não pela azáfama desse dia mas do acumular de tanto esforço, e nem sequer fora para proveito próprio.

O tempo passou, um pequeno e estranho ruído trouxe-o à vida e ainda meio ensonado sentiu o livro no colo resvalar para o chão. Algo não batia certo, a visão do espaço era totalmente distorcida da realidade, o tablier diferente, e a confusão na cabeça aumentava a cada segundo permitindo que a estupefacção fosse dominante. Olhando pelo espelho retrovisor viu que a fachada do edifício tinha escrito Caixa Geral de Depósitos. À frente, um estabelecimento tipo Café Central e descaído à direita outro café este com denominação Pastelaria Flor. Mas para ele o mais estranho eram as vestes dos homens e as botas que envergavam para além duma espécie de samarra tipo capote. Abanou a cabeça, olhou para o relógio e não queria acreditar. 18 h, o sol a pino, uma calor de rachar. No capô do carro o símbolo da Mercedes, e no banco do lado do condutor um periódico com a data de Agosto de 1979. 

Estremeceu, e após breves segundos, acordado e na plenitude de todas as suas faculdades não pode deixar de sorrir ante o que afinal acontecera. Bolas estava em Elvas, a cidade onde se estabelecera, e viu que recorria mentalmente ao processo de memorização, sub e inconsciente, o quanto presente ainda estava o passado e a certeza que o tempo era só a ponte entre dois momentos sem reticências mata-borrão apagador ou modernizados cleans informáticos. Surpreendentemente o cansaço pregara a partida de obrigá-lo a adormecer indevidamente e atirar-se para uma época que teimando esquecer sentia que se faria presente para o resto da vida. Soube nesse dia que nem o passar dos anos obscureceriam o que o cérebro gravava, decidindo naquela mesma altura, pudesse, um dia escrever algo sobre o que lhe acontecera, terminando com a afirmação que a Memória não se apaga, apenas e às vezes por motivos diversos não se recorda do que não se deseja ou quer lembrar.

Corria o mês de férias, calor tórrido, o panorama nacional pintado de fogos postos que destruíam matas e plantações, casas e casebres, mas e bem pior, destroçavam a vida de muita gente que passara décadas a lutar pela sobrevivência, saboreava na esplanada do café Sunset uma bica  normal, e qual espanto, quando reparo na chegada de um homem, já pintado de branco, bronzeado naturalmente, e cuja fisionomia não me era de todo estranha. Engoli em seco, a língua refrescou os lábios e os olhos abriram-se de espanto ao ver o dito sujeito parar em ferente da mesa e rasgando um sorriso de orelha a orelha exclamar.

- Tu! só pode ser o diabo pintado de anjo não me reconheces xé mano sou o Gali.

Levantei-me bruscamente e, empurrados pela força do destino deliciámos-nos com fraterno e sentido abraço. Como era possível que passados  41 anos  aquele bimbo se lembrasse de mim. E se dúvidas restassem desvaneceram-se quando disse, sem peias, mano lembras-te de ter falado daquela fresquinha da Apolo XI a última vez que nos encontrámos no bar do aeroporto em Luanda, ao que respondi afirmativamente levando com o desabafo em tempo real.

- A desalmada não descansou enquanto não me encontrou depois do empregado lhe ter dito onde morava e nome bolas só faltou dizer o nº da conta bancária
- Como sabes que foi assim
- Confidências da noite de núpcias 

Convidei-o a sentar-se, e ao mesmo tempo que falávamos do presente foi retratando a sua vida, divórcios, filhos que o tinham abandonado e o mal que os outros filhos lhe fizeram, enfim, um rol de agruras que somadas e colocadas no papel dariam para escrever um romance tão eloquente como Os Maias. Contudo a maior surpresa surgiu no preciso momento em que, ao elucidá-lo não ter sido a minha vida igualmente um mar de rosas, ter escrito um livro para carpir mágoas  e às vezes fazer umas crónicas do leitor para um Jornal Nacional, ter-me pedido na medida da minha disponibilidade se podia colocar uma pequena passagem da sua vida em forma de conto, acaso entendesse que teria algum valor o que contara, rematando o pedido com ar de grande diplomata.

- Quanto tenho de pagar pelo trabalho
- Vai-te catar Gali




Inácio
Agosto, 26/29 de Agosto de 2016
(Terminado às 00:53 Sábado)


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