sexta-feira, dezembro 23, 2016

FELIZ NATAL ... COM UM APERTO DE MÃO

APERTO DE MÃO

A todos aqueles que choram as suas penas no papel


  Correu a cortina da casa de banho, pegou numa das toalhas penduradas no varão ao lado do poliban e limpou-se meticulosamente, e mais que a sujidade tinha lavado a alma conspurcada de palavras colocadas sobre folhas (em formato dactilografado) passadas a limpo e corrigidas na net. Tantas vezes se tinha apossado dele a vontade de explodir nas tertúlias poéticas a que assistia a nalgumas vezes participava como interveniente, mas continha-se por respeito aos que nada escreviam e tudo engoliam, até sapos de lentes de contacto a debitarem frases que traduzidas apenas confirmavam a falta de atributos para a titulação de escritores poetas declamadores. Já seco vestiu umas calças, uma blusa, e o resto que todos devem usar e por tal não vale a pena mencionar, saindo em direcção ao quarto. Sem sono visível, não era compensador ficar de papo para o ar mas também não tinha apetite de ir laurear a pevide. Ainda não jantara, a acaba por se sentar no velho sofá da minúscula sala em frente à televisão desligada
  Sem dar conta do tempo passar, minutos depois encontrava-se no patamar duma escada composta por degraus feitos de versos irregulares intercalados com alguns de rima fonética que se erguia diante dos olhos esbugalhados dirigida ao céu. Hesitou 3’ 21’’ (preciosismo literário) e sem pedir autorização a DÉOS começa a subir degrau a degrau para não perder nenhum, parando a cada estrofe para descansar (que subir cansa) apreciando a as métricas do corrimão os sintagmas dos vãos, até que súbito depara-se à entrada do Páraísso, um jardim quase parecido ao da Estrela, sito em Lisboa, a fugir para a beleza abatinada do Mondego debruçado sobre o Guadiana com curvas similares ao Douro em fintas com o Minho socalcos do Tâmega margens do Sado, parecendo-lhe ver um sujeito meio esquisito sentado numa selha com o formato de pipa de vinho segurando uma pena, que ao vê-lo a deposita sobre um pergaminho que estava numa mesa feita de poemas sem pés; a cabeça estava enfeitada com uma coroa de louros com espinhos. Atrás deste uma alma de longas barbas e cabelos brancos e lisos lia um livro que à distância pelo volume podia ser a Odisseia ou uma Bíblia ainda por escrever mas que a distância e uma delicada neblina impossibilitava ver com nitidez, e queda-se estático na dúvida se avançar ou não.
  No horizonte viam-se figuras com asas, e entre elas umas tocavam liras outras harpas, e uma tocava badalo rindo-se que nem um perdido, talvez o único com juízo no meio daquela orquestra de seres sem passado presente nem futuro, mas que achavam que na terra toda a gente gostava de santos mesmo que fossem dos que sacam o máximo deixando as pessoas no limiar da pobreza. Mas para ele, um intruso que não fora escorraçado nem ameaçado, nada daquilo importava ou mexia com a sensibilidade, antes fez que um sorriso malandro aflorasse no rosto e antes que se tomasse de atrevimento e fosse embora a figura que o olhava com uma certa curiosidade faz um sinal para que se aproximasse, e feito com um gesto fora do comum e ao avançar não pode deixar de sorrir. O homem tinha uma pala na vista, barba e vestimenta que lhe eram familiar do tempo de escola em que as professoras de história o obrigavam a marrar nos livros que tangiam as descobertas, o caminho marítimo para a Índia que ele achava que já existia antes de ser descoberto, as naus do Gama do Gonçalo Marco, Diogo Auau, Fernão Mendes Galinha, e outros atrevidotes que demonstraram coragem na suas aventuras, mas que lhe lixavam o tempo de andar a rodar saias, e já quase à distância dum aperto de mão pára na expectativa que ele o questionasse.
- Qual a sua divina graça?
  Que raio de linguarejar era aquele, o que queria dizer com a expressão sua graça, porque não o mandara sentar passou-lhe pela cabeça, mas de imediato repara que não havia mais nenhum banco para o fazer. Seria que lhe perguntara o nome, dá-se ao direito de pensar.
- Chamo-me Pitoresco Versejado e qual a sua
- Há quem me chame Poeta outros Chato no fundo um gajo que lixou a vida a muitos fedelhos que em vez de estudarem andavam a tentar saltar para a espinha de quem não deviam para além de não conseguirem mas sente-se
- Mas não disse o nome
- A seu tempo lá chegará senhor Versejado mas ora sou tentado a desafiá-lo a fazer uma poesia a maias comigo porque chegou-me ao conhecimento que o amigo escreve
- Deve ser broma mal sei assinar o nome senhor
- Permita que o elucide mas há quem lá para os sítios onde o caro amigo mora que sabe assinar o nome mas não sabe escrever
- Quem sou para contraria uma alma do outro mundo um ser extraterrestre um génio da palavra
- Aceita ou não o desafio que lhe enderecei
- Claro que sim e espero não o defraudar
- Então comece que o verbo é seu
  Pitoresco dá mostras de estar completamente a leste do paraíso, ou não estivesse no Páraisso, uma versão on-line do céu onde Caim dera duas bordoadas em Abel quando descobriu que o sacana andava a encornar o próprio pai e o mandou para os anjinhos, apesar do Velho Testamento nem piar sobre o assunto, tanto mais que admiti-lo era dizer que a Eva cambalhotava com quem estivesse mais a mão de a fazer entre gemidos ir ao épico do prazer sexual sendo que rapidamente equaciona estar perante um desafio mais excitante que jogar numa equipa de futebol da 3ª distrital e aceita.
-Ora então comece senhor
- Nem pensar dou-lh’essa prerrogativa
- Ah quer dizer que candeia que vai à frente alumia duas vezes 
- Vamos lá homem comece q’estou em pulgas por saber quão vale no improviso
  Como por encanto os pássaros que voavam nas imediações vieram a todo o gás parar nos ramos das árvores mais próximas a donde se disputaria a contenda. No Purgatórrido o Mafarrico esfregava as mãos de contente, na terra o rei Eujaz I da Portugávia punha a mão na cabeça e nas Minas da Panasquice um antigo mineiro desempregado vociferava contra o Estado por terem-lhe lixado o emprego e a reforma e sua adorada Contrafeita Purificaste de Joelhos já não poder comparar os ‘produts’ for maquilhagem, e na terra do bimbo todavia ninguém sabia o nome do adversário do seu mui querido conterrâneo, mas este lançando mão de tudo o que aprendera na ruelas da parvoeira não se ficaria ante tal desaforo e aceita a incitação
- Posso começar
- Claro que sim avance lá com essa poesia
  Versejado pede que lhe forneça uma folha para escrever o poema, mas o adversário diz ser impossível dado pretender que os versos sejam improvisados, não restando ao Pitoresco que exibir um sorriso de pronto para a largada. Num raio de anos-luz faz-se silêncio democrático para que até as bactérias pudessem regozijar-se com a actuação do seu preferido.

Desvaneça-s’esta pujança bruta
em versos que postam ‘desalento,
sustento de uma raiva inculta
dest’alma já viciada em tormento

  O mundo cala-se. Teria o intruso decorado versos que estavam ainda na mente do predestinado à sua frente, aquele que cantara poeticamente os feitos dum povo que representado por embarcadiços ia por terras do ímpio comer as mães das criancinhas enquanto os pias andavam pelas florestas, noutras latitudes com o nome de matas, a caçar pirilampos para iluminar cabanas e cubatas onde os seus rebentos estudavam as teorias de Newton, o espírito de Lock, e as últimas novidades em matéria de Finanças para que no futuro a Banca não entrasse em failure to pay, mas este, com gesto quase homérico, não se faz esperar e declama.

Encheu-se-me ‘vida só d’enganos
sem ter por perto quem me fartasse
esbanjando parte de meus anos
à privação de ter quem m’amasse

  As árvores da redondeza batiam a ramagem de contentamento face à parada resposta que assistiam discutindo com a passarada que seria o vencedor daquele combate vocal e apostavam sementes contra cagadelas de pardais, uns a favor de Pitoresco Versejado outros do amigo de longa data. A alma de longas barbas e cabelos brancos e lisos que lia o livro aproxima-se dos beligerantes, e num revoltear de páginas do livro pergunta quem estava a ganhar e quantas palavras já tinham sido desbaratadas naquela disputa tola. Ele, mais do que qualquer mortal, sabia que a vitória pertenceria àquele que há muito fazia parte do seu exército de defuntos e que se tinham imortalizados já depois de fenecidos, enquanto aquele novo poetizo ainda tinha muitos anos à sua frente a tenir, antes de alcançar o etéreo vale dos génios, mas não quer interferir e fica à espera do que vinha a seguir.

Não te doa por tal o que não tenho
q’em madrugadas enlouquecidas
camuflei mágoas, fraco desempenho.

  Mal dito os versos olha para o contrário que sorrindo levanta e rodopia sobre os tacões das botas de couro. Nessa altura Pitoresco vê uma espada já ferrugenta presa à cintura e mais atrás o livro que a Alma lia dava pelo título Os Lusíadas, e quando aquele termina o rodopio e se senta é confrontado com uma lágrima que escorria da vista cega.

Caiba-me então e por bem presente
aliviar tuas penas por esquecidas
visto de minhas há mui sou ausente.

  Terminado o verso estende a mão para cumprimentar, e num acerbo tom de voz fala dando por terminado o repto que lhe lançara; mais uma vez não diz nome nem alcunha por sabido que tão pouco seria necessário, antes faz uma recomendação.
- Pitoresco Versejado não se engane que a luz que brilha no céu só às vezes ilumina os verdadeiros poetas e nós ao longo da história fomos vivendo de desilusões provocadas pelos desamores tidos por mulheres que amámos, mas pior é ser-se esquecido e traído pela pátria por quem arriscámos a própria existência
  Sem dar tempo a contestação virou as costas e desapareceu na parede que a neblina fazia. Era tempo de abandonar o sítio, descer a escadaria da ilusão, recolher ao frio do seu quarto, e esperar que no dia de Natal um Pai Natal qualquer animado de boas intenções lhe trouxesse de prenda uma poema escrito com versos. Na rua uma moto em escape livre faz com que desligue o interruptor da ficção.


Inácio
(Terminado a 10 de Dezembro às 01:21)

   

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