quarta-feira, julho 22, 2015

Mentirosa


 MENTIROSA
 (Do tempo dos biberões de vidro)
Parte desta história foi contada por uma senhora que ia envelhecendo pelas arrelias causadas pelo neto candengue mas que quase sempre desculpava às vezes protegia vá saber-se porquê. A outra confidenciou-ma um amigo de sempre que foi crescendo comigo, arquivando numa só memória muitas estroinices passadas juntos, e mantendo sigilo para evitar queixas ao ministério público decidi atribuir um nome fictício ao personagem principal e que será na extensão do conto o Reguila Candengue.
Todos a postos para engolirem o conteúdo? Comecemos então a narrativa.


  
I

O personagem ocupava naquele tempo o quarto da frente da vivenda que dava para a avenida principal com varanda para a perdição, e mesmo que não conseguisse ver todas as vizinhas a vestirem os pijamas através dos cortinados das largas janelas deixava vaguear a mente de criança pelo imaginário depois de desfolhadas revistas da Playboy ou coisa parecida, ou ainda visualizando filmes de 8 mm com cenas porno proibidas para a idade; mas como miúdo estava, como os seus amigos, catando-se para a pidesca ou um qualquer cipaio armado em polícia política do Estado Novo.

O quarto (convém referir) tinha 3 janelas e duas portas, aliás como seria natural pois ninguém estará a imaginar um gajo entrar no dormitório pela “varanda”, e numa área útil de cerca de 30 m2 coisa grande para hoje normal para o passado, equipado com cama guarda-fatos cómoda mesa-de-cabeceira e espaço para dominar a bola quando lhe desse na telha, paredes pintadas de creme encardido com tanto chuto, candeeiro de tecto ou lustre em risco para além de cortinas curiosamente sempre abertas, razão que se desconhece.

Para ir do quarto para o resto da mansão, chamo-lhe assim para dar um ar snob ao Reguila, havia várias opções, e como os leitores modernos apreciam palha nos conteúdos dos romances e coisas que tais, explanarei as vias de acesso, mas depois não digam ser enfadonho este tipo de descrição.

Comecemos pela «Via A» o acesso mais protegido pois como descrito o quarto tinha duas portas e uma delas, a desta via, dava para os aposentos do pai que por sua vez ligava-se a um corredor onde fora colocado um cesto de papéis aramado no umbral da porta que dava para o salão envidraçado para que o sacaninha pudesse executar cestos de meia distância e afundanços tipo NBA, pois o man era maluco por basket para além de futebol-de-quintal-ou-de-largo, calça aos matondos (não sabem o que é e ficam a saber o mesmo pois não desvendo, enfim tudo o que lhe desse gozo sem ditadoras de régua em punho muito menos numa sala de aulas do colégio privado em que andava, unidade de ensino com óptimas professoras melhores coleguinhas já que mesmo aos nove anos um tipo como ele gostava de olhar os caniços das meninas.
A «Via B» era pela porta que dava acesso à tal varanda, térrea, que por sua vez apresentava 3 opções; B1 descida pelas escadas da esquerda e que davam para a parte do quintal onde costumava jogar as futeboladas com amigos e os cães, ladear depois a vivenda (agora facilito a escrita) e entrar para o salão pelas porta da cozinha exterior enquanto que a opção B2 seria descer as escadas do lado direito da varanda e fazer o percurso no lado contrário ao descrito em B1. Havia outras Bñ mas eram a conjugação das anteriores e a sua explanação nada aporta de interesse à história muito menos ao que de facto este conto encerrar, podendo no entanto quem quiser imaginar o miúdo a subir ao telhado para chegar ao destino, partir uma telha e levar com o avô a correr atrás do fedelho de vassoura em riste, e o desalmado a rir-se, isto na melhor das hipóteses pois às vezes o azar bate à porta e uma queda da altura de 5/6 metros ou mais pode ser fatal, mas a verdade é que tal nunca aconteceu, pois se bem que o personagem fosse desabrido não constava que fosse tolo.

Não passava no fundo de um dos muitos meninos que o sol do hemisfério sul torrara a pele, que se sentava à volta da fogueira, tendo também um olhar brilhante quer oferecia natural encanto e em simultâneo uma expressão estranhamente amarga quando se aproximava do guarda-fatos colocado num dos cantos do quarto. Por vezes, em tardes de Domingo isolava-se enxotando o papão antes de abrir o gavetão dado não querer partilhar com o demónio as fotos guardadas entre livros de colecção 6 balas contos do Batman Super-Homem ou Tarzan, e pegando numa foto rolava pelo chão encerado, sem ficar farto. Eram momentos de revolta agnóstica descobrindo-se na fronte ainda sem rugas o sítio onde um dia se poderia ver a cor e o formato da tristeza.

Ninguém diria, nem eu, aliás como todos os seus amiguinhos, que aquele miúdo que soltava contagiantes gargalhadas secretamente as matizasse com uma dor enigmática. À sua volta tinham erguido uma espécie de muralha da China separando a infância do holocausto que constituíra o seu nascimento, uma protecção divina com base num Deus que ele crescendo foi-lhe decretando morte anunciada por execução irrevogável, não obstante as bíblias proliferarem pela casa e no quadro da Última Ceia onde estranhava só estarem homens julgando que as mulheres ainda estavam na cozinha a preparar a janta para aqueles marmanjões com ar de pescadores das bancas do mercado Vaticano, somado ao facto de a cada sábado a avó ir à missa numa igreja que distava 3 minutos de casa (para ele) em passo caracol, e as beatas alaparem de tarde para lanches sempre às expensas do mesmo Cristo neste caso Crista.

Porém, naquele sábado, um qualquer basta consultarem um calendário da década de 60 e ficam a saber quantos havia no ano, a Pietá de Michelangelo mesmo esculpida em pedra levantaria o pano que cobria o regaço para limpar uma gota teimosa que havia de refrescar o rosto empedernido. Pelas fotos, nos livros do pai, Reguila já visionara as pinturas da Capela Sistina e muitas outras obras clássicas e renascentistas que o impressionavam e sentia-se pequenino perante a grandeza do génio e talento daqueles artistas, não era que fosse um desprovido de engenho, mas a maior apetência comprovava-se por “deixar para amanhã que outros farão” algo inventara para contrariar o ditado popular que escutara cento de vezes a avó, mas que só para ser do contra tratou de adulterar.

Naquele dia a foto que segurava na mão, em tamanho gigante comparada com outras que sacara da secretária do pai estava a provocar-lhe comichão, um certo dejá vu, reflexo da sua fronha no espelho do quarto de banho (que esse objecto estava impedido de coabitar no quarto de dormir por sujeito a estilhaçar-se com uma bolada certeira num remate contra um keeper imaginário) e acima de tudo uma expressão idêntica à da sua tia moreninha não obstante que pelo cabelo não conseguia tirar-lhe a pinta. Como não conseguia decifrar o enigma daquele rosto de homem já calvo optou por devolvê-lo à procedência antes que caísse a estátua da Maria da Fonte ou uma bomba rebentasse no palácio do Gungunhana, e sarilhos já ia ter mal o avô e desse conta que lhe rasgara o jornal do dia.

A tarde convidava a uma ida ao cinema dos putos, um filme para maiores de 6 anos baleizão no intervalo, mas não corria nada de jeito próprio para a idade, por isso a opção passava por o pessoal se juntar no largo do Radio Clube e curtir uma futebolada no alcatrão antes que começasse a chegar o pessoal com os coches para irem à matiné das do Tropical antecedida por uma espécie de baile das sopeiras. A reunião fora agendada para as 16 horas, e se começasse a tempo dava duas horas e pico para disputarem o tremuno, se bem que 1 bastasse pois o que era demais chateava e as energias podiam faltar para subir ao muro que separa o Benfica do pátio do cinema e daí desfrutarem com cochichos os roços de coxas das parelhas ao som de Smoke Gets in Your Eyes dos Platters. Para eles o espectáculo para além de grátis dava mais pica que filmes da Marisol.

Restava uma hora para se aperaltar, calção camisola ½ manga, quedes sanjo, e um pullover para o fim de tarde que no final de Julho o tempo já se apresentava frescote. Claro que antes de sair convinha sacar 10 paus à velhota para uma Bola de Berlim e uma Seven-Up ou Mission Laranja no bar do BL e daí o money – podia estar no encontro um dos criados do pessoal e o negão não ter cumbu para lanches e isso era coisa que o incomodava – o lema de d'Artagnan era para ser extensivo também à malta da bitacaia. Só depois de confirmar tudo no seu sítio, os heróis de banda desenhada na estante, o cão a sacar uma soneca na casota ou à sombra do Coqueiro zarparia para o improvisado recinto de jogo distante de casa 5 minutos a passo de lesma em que só teria de ter cautela ao atravessar um cruzamento (quase me atreveria a dizer 600 m era percurso que teria de cobrir).

A avó encontrava-se na varanda descansando na sua cadeira de repouso, nada de balanço que o velha não gostava, preparada para mais uma leitura dumas quantas páginas do Velho Testamento encharcadas de dogmas que só ela decifrava e contestaria se estivesse para aí virada, sabendo incluso o valor acrescentado que aquelas “cantadas” traziam que fazia enorme confusão a Reguila dado que naquele livro o Cristo e os Apóstolos não usavam roupas iguais à do Mandrake, e por tal não podiam fazer truques de multiplicação dos pães, apesar de já acreditar que podiam andar sobres as águas do mar da Galileia pois Jesus sabia o caminho das rochas submersas o que evitou Pedrocas morrer afogado e tomar o caminho do reino dos mortais. Interessava-lhe contudo, naquele momento, sacar o pilim à velhota e dar de fosques por isso chegara a altura de se aviar em terra que a maré estava a subir e os amigos, se não aparecesse a tempo, substituíam-no por um primo chegado naquele fim-de-semana dos confins do inferno.

Perfilado perante a avó, que naquele tempo não era tão como se pudesse julgar, reparou que a bíblia estava aberta sobre o colo mostrando um retrato de mulher e armado em engraçadinho perguntou.

- Quem é essa senhora?

Havia matéria que nem o Diabo se atreveria a brincar com aquela mulher sem levar troco, e num sorriso matreiro sabendo que o picanço não ficaria por aí, olhou para a imagem, passou a mão por cima quase afagando-a e respondeu

- É a Virgem Maria… a mãe de Jesus Cristo!

Fechado o livro sagrado recostou-se ainda mais aguardando o disparate seguinte – conhecia o fedelho por dentro e por fora e não se enganaria com a matreirice do menino mas estava há muito preparada para dar respostas que nem Platão Aristóteles ou Judas Iscariote tinham capacidade intelectual para as processar. Ergueu ligeiramente o tronco fitando-o dos pés à cabeça que pelo tamanho do pirralho bastava 1 segundo vendo que por detrás daqueles olhos que tão bem conhecia a proveniência o que viria era uma resposta azeda ou uma pergunta do arco da velha.

- Mãe…onde está a minha mãe!

II

Há verdades que não são necessárias que as contemos e ela pelos anos experiência e pela dor de tanta perda sabia que o neto aprenderia com o tempo a distinguir o bem do mal a liberdade da ignorância à prisão da sabedoria. Os caminhos que trilhasse jamais podia modificá-los, mas seria sempre a mão enquanto o seu frágil coração o permitisse – escondera-lhe que tomava medicação algo que pressupostamente não traria ganho ao puto. A 1ª guerra contra a Alemanha, os disparates da 1ª república, os desgostos de alguns falecimentos indesejados e a destempo os 5 filhos que criara e especialmente aquele desalmado não lhe proporcionaram um coração isento de perigos.
A calma no estágio absoluto era apanágio dela mas mentiria se negasse ter sentido uma guinada no peito, um tremer de Maria ajoelhada perante a cruz onde estava pregado Cristo agonizante. Não tanto pela pergunta em si o florar duma certa dor de um luto encapotado mas pela forma e timbre da interpelação. De facto fora mais que uma inocente pergunta, dir-se-ia ter sido uma confissão de (eu sei mas conta-me uma mentira que as verdades ferem) e antes de contestar olhou para os vasos com avencas e fetos o céu para o lado nascente e respondeu exactamente o que ele queira ouvir

- A tua mãe foi morar numa casa pertinho do céu e coo tenho uma chave quendo cresceres entrego-ta

Mais curta fora a guerra das estrelas que o silêncio que se instalou antes do neto falar

- Um dia descubro onde fica a casa e quando lá chegar não preciso de chaves entro pela janela dê-me 20 escudos vou jogar futebol no largo do Tropical

Seguidamente resmungou algo ininteligível e dirigiu-se ao quarto. Esquecera-se do boné se bem que na época dispensava-se e parado junto à cama deixou-se cair de costas e fixando o tecto pareceu-lhe ver a sombra dum rosto de mulher o mesmo tempo que se permitia um sorriso indefinido a aflorar no rosto exclamado – Velha mentirosa!

Faltavam apenas 12 minutos para a hora combinada com os amigos. Deu um salto e saiu deixando a porta aberta, a que dava para a varanda onde a avó ainda se mantinha repousada não reparando que ela apresentava um sorriso trocista pois escutara a exclamação. Podia ser por vezes convenientemente distraída, condescendente até mas de surda nada tinha dizendo-lhe à laia dum até logo ficava-te bem – Se vieres tarde jantas com o cão!

Quando Reguila entrou no parque de estacionamento do Tropical já o pessoal preparava as balizas, e como não havia guarda-redes naqueles jogos as mesmas tinham apenas 1 metro de largura. Caminhava sereno, um certo ar de David enfrentando Golias e no rosto ligeiro traço de enfado evitando contudo deixar transparecer o que lhe i na alma. Não ficara agradado com a resposta da avó mas também sendo muito novo sobrava-lhe tempo para saber a verdade dado não ser menino para engolir histórias da Alice no País das Maravilhas e a Branca de Neve gostar ou não de anões porque conhecia a velocidade com que Bill The Kid sacava o revólver e a cor das divisas do General Custer. Desconfiava que lhe escondiam algo de sua mãe, que a velha só era “mãe de verdade” e não de registo de nascimento e se tal o incomodava 99% do tempo não deixava transparecer esse tipo de desconfiança açucarada com uma taça de mousse de chocolate, e já no meio dos amigos, deixando que a boca se rasgasse num sorriso disparou.

- Madiés depois do futebol vamos às bolas de Berlim?


 III


O que vos contei é quase tudo verdade e envolve um amigo do tempo das fraldas de pano em que nos alimentávamos a biberão de vidro mistura de leite em pó com água fervida numa cafeteira de alumínio, não deixando de ser um pequeno conto para alegrar a memória, história banal igual a tantas outras que como esta não ganham prémios nem são badaladas nas Tvs mas marcaram o protagonista, que despida a farda de miúdo fez-se home m de verdade.



Fim
Inicio a 28 de Junho terminado a 21 de Julho de 2015

Inácio


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