domingo, dezembro 22, 2013

Um Franciso que não era Papa

Para todos as pessoas de boa vontade especialmente para o Papa Francisco


FRANCISCO REVOLTAS

(Conto de Natal)
2013


Quase podia ser uma das histórias da minha juventude ou infância, carregada de surpresas, em que fui tantas vezes ave de arribação, pássaro sem galho fixo, mas é tão só um pequeno conto de natal versando um episódio quase mitológico sobre um amigo de tempos idos que tive o privilégio de conhecer noutras latitudes e se a memória não me atraiçoa esse jovem teria por essa altura cerca de 17 anos dando pelo nome de Francisco, Revoltas de apelido e não só...conhecido na cidade e arredores como um gajo enxertado em corno de cabra, o mesmo que dizer “com o diabo no corpo” aliás tendo exactamente o perfil dum tal Jesus quando entrou no Templo para correr à chibatada os vendilhões, só que 2000 anos depois o nosso bom Francisco a fazê-lo seria à mocada nos costados da corja de racistas que passavam o tempo a dizer mal dos negrinhos que, para além de não terem a cor do tal Cristo o pessoal nem sequer sabia que o cota andara por cima das águas ou que tivesse feito o milagre dos pães que para a maioria do pessoal bem podia regressar à terra a ver se repetia a cena e matava a fome a muitos desgraçados.

Já se entrara no mês de Dezembro do longínquo ano de 1970, morto o Salazar por culpa Divina, subido ao poder o Marcelo, também por culpa do mesmo, e o Natal aproximava-se quente com as temperaturas a rondar os 26º, e naturalmente húmido, convidando às Cucas e Nocais, Finos Girafas Canhangulos e Elefantes (tudo cerveja a copo) e porque não a uma boa vinhaça Lagosta verde branco ou Mateus Rosé acabado de sair da geleira também conhecida por frigorífico.

A época em si era enfadonha para o meu amigo, e a família sabendo do pecado de boca dele arranjavam-lhe sarna para se coçar esquecidos que o “meu” estava a crescer todos os dias e desde que nascera – Féfé detestava aquele tipo de festas, onde se reuniam para encher o bandulho, conversar de coisas que não tinham interesse para a revolução – de bom eram as férias estudantis à pala do Cristo, e mesmo que a rapaziada fosse ateu gozava-as religiosamente.

A Consoada na casa de Francisco reuniria nesse ano os 20 habituais adultos, a matilha mais nova, e teria os tradicionais pratos copos e talheres reservados preferencialmente para estas épocas, uma árvore de Natal carregada de prendas que os mais velhos sabiam de cor e salteado as prendas que continha e o que lhes custara em escudos ou angolares, continuando contudo a indrominar a garotada com a patranha que o Pai-natal ia descer pela chaminé a meio da noite (mas só depois de estarem todos a dormir). Claro que os mais velhinhos riam-se com tamanha anedota até porque na sala onde estava a árvore não havia Chaminé nem lareira e as fogueiras ateavam-se no quintal e só para a brincadeira. Por outro lado quem acreditava que o Pai-natal já nascera velho e de barbas brancas, que não morria? Mas se a ideia agradava aos mais velhos para que os haviam de contrariar.

Chegados ao jantar da noite que antecederia a Consoada, mais propriamente dia 23, Francisco escutou silenciosamente as deliberações face ao dia seguinte e que reuniria os do costume mais 2 amigos do pai que estavam de passagem pelo território, e um casal com dois filhotes que tinham chegado na semana anterior à cidade e conhecidos de fresca data da própria família, convidados por um dos primos que não explicou a origem de tal amizade.

Enquanto as conversas iam decorrendo Francisco media mentalmente o tamanho do salão sobejamente sabida a ária até porque foram inúmeras as vezes que fizera corridas de dinky toys, sabendo perfeitamente que caberiam mais ½ dúzia de morfantes e ainda sobrava espaço para um tango a dois. Porque não! Pensou. Se podiam convidar estranhos ele também tinha o direito de convidar alguns dos seus amigos, estes de longa data de dos jogos de futebol ao luar, para além que estes não tinham dinheiro para viagens à terra natal - alguns nem tinham electricidade para iluminar a árvore de Natal. Eram criados e interrogou-se se teria ou não direito ao Natal a criadagem e para este jovem de 17 anos a evidência sublinhava-se com uma única palavra -Tinham- razão porque tomou a corajosa decisão de anunciar à mesa que tinha 3 amigos para cearem com ele na noite de consoada.

- Vou trazer o Mungué o Vaijasexta e o Totogula amanhã para comerem connosco

Fez-se silêncio sepulcral na sala; ninguém ousaria acreditar que o “menino” tivesse o desplante de trazer criados para jantar com a família, e dando Francisco conta da constrangimento causado rematou:

- São meus amigos menos estranhos que os sujeitos que vocês convidaram que nunca vi mais gordos e não faço ideia se essa gente é de confiança enquanto estes vocês conhecem à anos e até de vos fazerem certos recados quando algum dos nossos empregados se ausenta para ir à terra aliás como acontecerá amanhã com a Roxalitia e o Seminato!

O silêncio continuava doiro e Francisco deu por terminada a refeição levantando-se e dirigindo-se para a saída que dava para a terraça deu a entender a outra razão da sua tomada de decisão

- Nesta sala sobra espaço, e para além do número das pessoas que vocês estavam a contar ficará muito mais bem composta com...mais 4 à mesa

Cinco anos mais tarde, cruzei-me casualmente com Francisco numa rua movimentada da capital da ainda província ultramarina e aproveitámos para por a conversa em dia, tomar café, rever episódios da infância e da juventude confidenciando-me que embarcava no fim desse mês para o “puto”.

Mas a vida continuou a oferecer a muitos a possibilidade de continuarem ter um bom Natal, tantos quantos os anos que viveram; alguns porém, deixaram a “Árvore” plantada num quintal duma qualquer cidade da África lusófona, procurando um porto de abrigo para ao navios que se perderam na tempestade da revolta, daí não ter sido surpresa nenhuma quando, passeando na avenida dos Aliados na cinzenta cidade do Porto, pareceu-me ver um homem a escrever sentado num dos bancos de ferro presos a uma pequena mesa, de igual material que a câmara colocara no espaço normalmente utilizado por turistas em tempo de verão. Era inverno ao contrário doutras terras, e sentindo que a figura era familiar aproximei-me da mesa.

Olhei o relógio na torre do edifício; marcava 22:33 - os calendários sem excepção assinalavam o dia 24 de Dezembro de 2012 e parado em frente do local e verificando afinal que a mesa estava vazia sentei-me de costas para a Câmara. Nos últimos anos passara a consoada completamente só e nem por isso ganhara de prenda uma medalha de mártir – tinham sido noites duras e apesar de não matarem ficara a saber quanto doía a solidão. Deixei rolar o olhar pela noite, escura e escrevi num guardanapo de papel «que se lixe Cristo também não tinha consoadas nem Natais». Levantei-me e decidi regressar a casa; felizmente não precisava de caminhar sobre as águas do Douro e exclamei:

- Que será feito de Francisco!


Fim

Bom Natal 2013

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