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Espero
que apreciem este conto, senhores dos “Acordos” do Alvor...
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NUNCA
DISSEMOS ADEUS
Mil
novecentos e setenta e um, batiam as 18 horas da tarde, chegava a casa vindo de
mais um treino no Clube de Ténis de Luanda, sito nos Coqueiros paredes-meias
com o Sporting Clube de Luanda, onde a convite do meu amigo Cadavez e treinador
da selecção de andebol do Liceu Nacional Salvado Correia onde também jogava,
aceitei treinar na equipa de basquetebol dos lagartos, para tristeza dos meus
primos que eram militantes e jogadores da equipa do Benfica de Luanda, que
viria a ser campeã nacional.
Preparava-me
para um torneio de ténis no escalão sénior, que se iniciava no sábado, estando
convicto alcançar as meias finais ou mesmo a final, dependendo do lado do
quadro em que o sorteio colocasse Daniel de Freitas, o melhor de todos e meu
treinador.
Nesse
tarde chegara mais cedo que o costume trazido pelo pai do meu colega e parceiro
de pares Daniel Costa, que mais tarde e já em Portugal viria a ser treinador de
João Cunha e Silva. Antes de me dirigir a casa passei logicamente pela
pastelaria Kitanda a inteirar-me da malamba – parecia estar tudo fixe; uma
cola, três dedos de parlaié e bazei para o kimbo
Estranhamente
a porta de entrada da vivenda estava fechada, caso raro, porque Dona Albertina
só fechava a porta que dava acesso ao jardim da frente quando se ausentavam
todos, incluindo o Tadeu Trindade; este não era muito de fiar porque se a
patroa lhe desse largas metia no quarto do meu pai um dos engates de rua. Se
a curiosidade mata o rato a mim deixou alerta; a vivenda onde morava a minha
tia Alice, casada em segundas núpcias, já quarentona, com o meu tio Gordo,
também se encontrava encerrada. Não me apercebi de qualquer alarido indicando
que a moribunda guerra ultramarina tivesse renascido e muito menos na zona do
asfalto.
Entrei,
sentei-me na sala sem sequer subir ao primeiro andar; passados cerca de dez
minutos ouvi bater na porta das traseiras – era uma das vizinhas, dona Linocas
Vinhais, que com um ar de infelicidade e a custo lá foi tentando explicar o que
era fácil prático e rápido de dizer: Cito, o teu avô morreu.
Estremeci,
senti os olhos emudecerem, uns lábios darem um beijo, uma mão afagar os
cabelos. Já sentados no sofá, puxou-me até me deitar a cabeça no seu colo.
Foram longos os minutos, tão longos que os ponteiros do relógio pareciam usar
bengala a cada volta. Mesmo que fossem breves segundos, o meu pensamento voou à
velocidade que o cérebro conseguia trazer ao consciente tudo o que de mais
grato guardara do velho; principalmente as patifarias que lhe fazia na casa
grande, a da grande gajajeira.
Passaram
horas, descera a noite há muito, quando a minha avó e os seus filhos noras
sobrinhos-netos bisnetos chegaram a casa. Olhei para a sua cara, e a fisionomia
não apresentava qualquer alteração que não fosse a expressão normal, quando não
havia festança. Nada se passara, estranho, numa mulher que já comemorara as
bodas de ouro, que se vestira de virgem no casamento, os únicos homens que
conhecera nus fora o marido, os irmãos mais novos quando lhes dava banho, os
filhos e o sacaninha do neto.
Nem
uma lágrima vertera na morgue segundo me disse a minha prima Belinha; viera a
casa tomar banho, vestir-se de luto e regressar para a vigília ao mesmo tempo
que dizia ser o jantar servido às oito em ponto.
Percebi mais tarde que efectivamente aquela mulher, já
para além dos setenta anos, mãe de cinco filhos vivos do mesmo pai, não dissera
adeus ao seu marido, apenas um até já. Depois
do jantar, dei a entender que queria ir com eles até a igreja – fui proibido
com um não. Só mais tarde consegui compreender a sua atitude.
A
vida decorreu normal a partir do dia seguinte ao que se realizou o funeral que
teve lugar no cemitério do bairro Miramar, destinado aos e Combatentes da
Grande Guerra de 14 a
18 contra a Alemanha; nesse fim-de-semana o torneio correu-me mal, não atinava com
as linhas, com a altura da rede, e a cor branca das bolas pareciam pombas
tolas.
Passaram
os anos e fui crescendo, fazendo-me homem nos intervalos duma saudável loucura
de fim de juventude, até ao dia em que vesti uma farda dum exército que lutava
a favor da manutenção da guerra dita colonial, já terminada naquelas bandas,
apenas prolongada para justificar a permanência dos militares da Metrópole e
das regalias e mordomias obtidas com as campanhas feitas nas messes de
sargentos e oficiais, até ao dia que em Portugal meia dúzia de capitães
entenderam colocar um ponto final no Marcelismo.
Entráramos
em mil novecentos e setenta e cinco, as Acácias mantinham-se inalteráveis as
pessoas abalavam os cães ainda latiam o Tadeu Trindade metia-se em sarilhos
policiais, e eu, jovem adulto envergava diariamente um par de calas azuis, uma
camisa branca com dobrados, e dormindo bastas vezes no monta-cargas em plena placa
do aeroporto Craveiro Lopes situado ao cimo da Avenida Lisboa, com início no
largo da Maianga passando pela morgue, e sem contar as horas
Por
vezes deslocava-me de Mercedes 230 S outras de Cortina – o meu amigo ‘Barrabás’
tipo afável e de barba cerrada, dera-me como paga numa jogatina de poker, a doer,
um Escort 1300; como fazia muito chinfrim, sobretudo de madrugada quando
regressava ao lar ou dava uma saltada ao ainda aberto Flamingo na esquina da
recta que antecedia a ponte da Restinga, deixava-o no parque de estacionamento
do prédio da CUA frente ao largo Maria da Fonte, onde tinha um ‘apartment’ para
a desbunda. Dele vias as palmeiras
da Marginal duma Luanda que se entristecia, e que pareciam impávidas perante o
descalabro que se adivinhava dia a dia, talvez emudecidas perante o choque de
perspectivarem a traição a que assistiam do alto das suas copas, ao mesmo tempo
que desde sua casa, Albertina via partir filhos netos familiares e os amigos
que como ela tinham navegado em direcção a terras africanas – três filhos
estavam já em Portugal restando Manuel o ‘Lei’ e José o ‘Gordo’, exactamente o
mais velho e o mais novo dos filhos homens. Apenas restávamos quatro, excluindo
os familiares por parte da família da nora, Carmito
Manuel
ficara por causa da empresa e duma sepultura; José pensando que a metrópole não
lhe daria condições de vida satisfatórias, e sempre tendo emprego como redactor
no jornal Diário de Luanda, decidira que só regressaria a Portugal se a mãe
falecesse dado que esta se negara a abandonar Angola; tinham a certeza que nada
de mal lhes poderia acontecer por causa duma ‘independênciazinha’ que estava à
vista. Eram Angolanos de coração e mestiços por afinidade.
Naquela
noite de Julho, eu jantava em casa; estivera uma semana em trabalho de ‘Chefia
de Escala’ no Terminal de Carga do aeroporto da cidade de Lobito. Contei quatro
à mesa, se bem que por vezes desse para perceber só três ou nenhum, quando o
pensamento voava para coisas que magoavam – ausências que agora provocavam
maior dor. Olhei a minha avó, vi-a envelhecida sem que tivesse dado conta até
então; era um daqueles netos, como quase todos os do meu tempo, que quando
tomávamos consciência a nossa avó já era velha, e para nós meninos desabridos
no calor da cidade, os velhos não envelhecem – e pronto. Mas estava, e mais que
os olhos era o coração que mo dissera, por também me sentir envelhecido aos 22
anos, traído e esgotado pelas cenas ‘holocausticas’ que assistia diariamente no
‘átrio do aeroporto’, onde se amontoava entre farrapos, alguns ‘farrapilhas’ ao
lado de muta gente boa e honesta.
A
minha vida familiar ecoava à velocidade das torrentes lamacentas que no início
da década de sessenta desciam das bandas da Vila Alice até à avenida Sá da
Bandeira, e entravam em enxurrada elo quintal dentro – para azar do meu
falecido avô a nossa casa fazia gaveto e levava com tudo, até com penicos; com
ela via partir amigos e familiares, outros desaparecendo na neblina dos
Movimentos de Libertação que o exército português mandado ir da metrópole para
substituir os que lá estavam e eventualmente não estivessem para goladas de
estado, reabilitara – começava a sentir-me jovialmente sozinho!
O
meu avô chegara a Angola oito anos antes da minha avó; quase uma eternidade o
tempo em ficara que ainda nova só e com cinco filhos, quatro deles menores, a
que somava aos quatro anos mais desde que o marido falecera _ meia dúzia de
anos, nada é quando se leva 78
a fazer num próximo 8 de Novembro, assim pensava eu,
provavelmente por ainda desconhecer as dores duma ossada ao levantar pela
manhã.
O
jantar começou à hora de sempre, com excepção da consoada, e naquele momento
vendo que ninguém faltava, dos vivos, fiz a pergunta que guardara nos últimos
anos.
_ Mãe,
nunca a vi chorar nem na morte do meu avô! Nem uma lágrima um adeus! Que sentia
por ele?
Silêncio
absoluto; daria para escutar os sinos da Igreja Sagrada família se acaso ainda
tocassem nessa altura, anunciando a destruição de todas as bíblias do universo.
Silêncio nunca visto, sem cor, sem voz.
O
meu tio olhava-me estupefacto, e se o cachimbo estivesse na boca o homem
ter-se-ia engasgado. O meu pai parecia ter escutado a Abertura 1812 de
Tchaikovky e antes que interviesse, por ter demorado, talvez procurando as
palavras certas a dirigir a um filho que já não era propriamente um imberbe,
Albertina, mãe dele, fez-lhe sinal para não falar, apenas com o olhar. África toda estava dentro do meu peito,
não me dando conta, nem eles, que aquela mulher já enterrara parte da sua alma
no chão duma terra que tomara como sua, e há muito decidira que o seu corpo
ficaria junto ao do seu marido. O olhar lançado ao filho mais novo era
inequívoco; a pergunta fora-lhe dirigida, e nunca lhe reconheceria o direito de
julgar os seus próprios sentimentos. Respondeu-me sem olhar.
_
Lágrimas só se vêm quando os olhos as mostram e adeus diz-se aos que partem
para sempre...
Olhei
os dois homens sentados comigo à mesa; podia escrever uma série de adjectivos caros
classificando-os, daqueles que se vai ao dicionário procurar se quisermos dar
uma de eruditos, mas só uma frase passeou pelo meu cérebro – ‘caras de parvo’.
Albertina já encerrara o compêndio da filosofia e numa frase explanara toda a
ciência empírica das suas sete décadas de vida; ela própria filósofa e
psicóloga na criação dos filhos netos bisnetos e afins, doutorada em dor,
historiadora da guerra contra a ausência.
Aquela
minha única avó era verdadeiramente a minha mãe, a maior das minhas mães, mãe a
dobrar a triplicar elevada à infinita potência. Rompera-me a tampa do caixão
onde sepultara durante anos a dor da orfandade; pela primeira vez dera conta
que à minha mãe carnal nunca lhe diria adeus, porque aquela suspendera a sua
vida para tratar do ‘filho’ em lugar de uma mulher que a incúria dos homens
matara. Numa dissera adeus porque nunca permitira que partisse para sempre.
No
seu prato vi uma batata cozida e um pouco de brócolos; Albertina raramente
comia peixe e desde a morte do marido nunca mais comera carne. Nunca lhe
perguntei sobre aquele tipo de alimentação. Com um sinal, respeitando o
silêncio, deixei entender a necessidade de me ausentar e ela anuiu, num
encolher de ombros.
Subi
ao primeiro andar e já no meu quarto deixei ecoar ela casa um berro alucinante
seguido duma triste gargalhada. Ninguém se levantaria da mesa a ver o que se
passara – ela não o permitiria; sabia porque sentira que cada abraço, cada
beijo, cada reprimenda que me dera, trazia aportado uma cor morena, e um calor
que alguma mulher me daria por longa que fosse a minha vida. O significado da
palavra mãe não o encontraria no dicionário ou nas fotos das barrigas de
grávidas. Fora-me impresso na pele.
Era
uma noite de cacimbo, estando no entanto ameno o tempo. Julho depressa se
esgotaria, Setembro anunciara-se ainda mais triste, não querendo prometer o início
do verão, a vida quase insuportável, o trabalho atingira o zénite da minha
capacidade, as provocações anunciaram-se e com elas a dúvida. No entanto a vida
para Manuel, José, e sobretudo Albertina continuava inexoravelmente pacífica.
Havia muita gente que os defenderia; para mim a situação degradava-se à medida
que Outubro avançava, não me passando pela cabeça que o fim estaria no virar
duma curva, ao anoitecer, no regresso dum ‘muceque’ ou na bala duma G3 das
FMA’s!
A
pressão interna no aeroporto e fora dele era notória, mas o cumprimento do
dever estava acima de diferendos ou de agressões verbais. Novembro, estava a
caminho...
Já
noite, cheguei a casa por volta das 19 h, hora do relógio do carro; queria
tomar banho mudar de roupa, por ter mais um voo para carregar, o tempo
escassear e ter programado não voltar antes das oito da manhã seguinte.
Estranhei ver o carro de ‘tio’ Nuno, director de carga da TAAG lá em casa e
àquela hora, mas mais estanhei o meu saco de lona na sala. Não me deram tempo para pensar o que
teria acontecido. Nuno Viegas Vaz estendeu-me a mão sujeitando uma passagem de
avião sem destino, para o voo da meia-noite e meia, e um frase apenas.
_
Não digas a ninguém que embarcas hoje nada de telefonemas nem à chegada, que alguém
te contactará pessoalmente dentro de dias.
Rapidamente
passou-me pela cabeça mil e um cenários, afastados de pronto para não
cometer nenhuma loucura. Sabia as razões daquela partida apressada, a vontade
de ficar mas também a certeza que não me deixariam, pelo menos vivo. Olhei para
os presentes e perguntei se ‘havia tempo’ de tomar banho; já que deixava a
minha terra ao menos que fosse de corpo lavado, pois a alma estava
completamente ensanguentada. Demorei pouco mais de cinco minutos a descer do
quarto.
_
Levo o Escort, estaciono-o no parque público do aeroporto; se o roubarem também
não levam grande coisa. Vou rápido, ainda tenho muitas paletes para carregar no
‘meu voo’.
Peguei
no saco, olhei pela última vez aquela casa como se quisesse fotografar cada
milímetro de parede, ao mesmo tempo que me dirigia para saída. Não conhecia o
significado de saudade, apenas de ausência. Sabia que não podia dizer adeus,
que essa palavra só se diz quando alguém parte de vez. Albertina tinha 78 anos
e sentada no seu cadeirão apenas abanou com a cabeça um sim!
Nunca mais nos
veríamos nunca mais falaríamos, nunca mais nos tocaríamos; mas aquele amor era
indestrutível – nunca diríamos adeus.
Adolfo
Inácio Castelbranco d’ Oliveira
Porto
25 de Outubro de 2011