Médico...jamais
MÉDICO JAMAIS!
Entrou no
escritório contíguo ao quarto do pai sem bater, o olhar semicerrado deixava
antever borrasca. Ter-se-ia passado algo de mal ou estaria para acontecer
reconhecido que o ambiente entre progenitor e descendente nos últimos
agravara-se ao ponto duma vizinha ter comentado que pareciam os exércitos de
Bonaparte e as hostes lusitanas na campanha francesa por conquistara a
península Ibérica e que Junot Soult e Massenet ao pé do rapaz mais não passavam
de Bispos concorrendo ao cargo de cardeais. Sobejamente o pai sabia que pelo
filho jamais haveria um padre na família nunca usaria tiara de Papa mas
esperava no mínimo um pouco de bom senso na cachola e num rasgo de humildade e
colocando o orgulho em águas de bacalhau durante um semestre o levasse a
reflectir sobre a hipótese de se candidatar ao curso de medicina. As de
semelhante desejo e o suporte das razões sempre as mantivera sigilosas e
avisara a família para certos assuntos ficarem tal como eles os queria manter
ou seja no segredo dos deuses.
Manulino consciencializara
há muito que aquela área profissional garantia um futuro promissor; dentista
por exemplo, garantido, ou não tivéssemos todos dentes para tratar e médico
legista então nem se falava; quem não morria, se até o velho das botas batera a
bota e com o estalar de conflitos internacionais e os que por casa já duravam
há muito, curandeiros coveiros vendedores de flores e velas e carpideiras
afirmar-se-iam como esteio da classe pagadora de impostos ultrapassando em
status os que tinham enveredado por vender o que não tinham, construir gráficos
com evoluções financeiras assentes na especulação do dinheiro virtual e
desvalorizando a dignidade aumentando os seus lucros pessoais ou de grupos à
margem da lei a custo do princípio dos vasos comunicantes inclinados sempre
para o mesmo lado. O futuro só ao destino pertencia e ele como pai queria era
um filho mais agarrado aos livros de estudo e o compromisso de tudo fazer para
entrar na faculdade de medicina seguindo o exemplo das primas Marlinina e
Laurentana que o próprio sub-repticiamente ajudara com a atribuição duma bolsa
particular para que pudessem estudar e concretizar os sonhos sem nunca cobrar e
na certeza que jamais saberiam que as ajudara pela sua boca pois o done is done
e a decisão de abrir os cordões à bolsa só a ele dizia respeito dando-se por
satisfeito só por poder registar o êxito das garotas.
Os ecos duma
guerra com fim anunciado por capitulação duma das partes ou golpada feita por
imbecis no uso legítimo de armas fornecidas por quem lhe pagava o vencimento e
se veria traído não chegavam para acalmar um homem sabedor das dificuldades de
gerir uma grande empresa, governar uma casa, atender às necessidades duma
família espalhada por 3 continentes; pretendia mais, pretendia que o filho
deixasse de ser um diabo à solta com a mania das revoluções e não viesse no
futuro a oferecer-lhe mais uma faixa preta no braço se bem não a ter usara pelo
falecimento da mulher conflitos que se acostumara a liderar sem prejuízo para
os demais.
Naquele dia Manulino
ostentava um ar mais sereno; a pescaria correra às mil maravilhas, o barco a
funcionar na perfeição as canas 5 estrelas e o Plymouth do irmão, companheiro
inseparável naquela actividade de pesca amadora e lúdica a dar garantia que não
os deixaria a 30 km a sul de casa, os cigarros ainda sem serem fabricados com
liamba, o café extraído duma arvore natural apanhado por safra, a casca da
banana continuava a não ser comida, e os baiacus que teriam emigrado à falta de
fios de pesca para cortarem ajudava à boa disposição somado ao facto de ter
vindo a saber por portas e travessas que as notas do filho subiriam, mesmo que
ligeiramente naquele trimestre, mas ainda assim insuficientes para o
descansarem, manchado dia pelo facto do gloriosos Benfica continuar a lixar o
seu Belenenses, clube das elites no campeonato nacional, os bancos não lhe
lixaram os depósitos com taxas absurdas e imprevistas ou negociatas de alto
risco, os aviões não caíram por falta de assistência técnica ou peças, os
barcos não se afundavam nem haveria mais Santas Marias para assaltar, a fome
começara a fazer parte duma memória histórica que não devia comportar
ramalhetes de flores negras e o mar manter as mesmas marés com a lua a expor o
seu esplendor em noites de céu aberto. Todavia e para ensombrar vindo de muito
distante começavam a chegar ventos com notícias confusas sobre o Vietname e a
possível capitulação dos gringos, alertando para uma derrota da USA abrir uma
janela de oportunidade para o avanço da ideologia avermelhada e os grupos
ligados à URSS poderem aspirar a golpes revolucionários em várias partes do
mundo e Portugal não seria excepção, até no seu leigo entendimento politico. Na
semana anterior após uma das tradicionais idas ao cinema com o grupo das 4ª
abordavam o tema com alguma preocupação não lhes agradando que as foices e os
martelos andassem nas mãos da ganapada com mania de serem descendentes de
Lenine, afilhados de Mao Tsé Tsung ou julgarem Marcelo Caetano primo em segundo
grau de Drácula e que chupavam o sangue das crianças à ceia.
- Se os Gringos perdem no Vietname os Sovietes
vão cantar vitória amigo Nunôt
- Nem duvide os tipos não tarda promovem
revoluções por tudo quanto é sítio e por cá com o apoio de alguns militares
sabedores que a guerra ultramarina está ganha e impossível continuara a definir
os espaços onde o outro lado pode actuar tudo farão para não haver
independências surgidas de dentro concorda amigo Alipinto
- Claro e já imagino o surgimento dum governo
vermelho e como os russos nunca entregaram nada a ninguém basta atender à
situação dos estados que compõem o território para lá da Muro de Berlim ficam a
mandar em tudo já imaginaram o que significa em termos de Zonas exclusivas quer
marítimas quer aéreas
- Tem razão e como a Itália já experimentou
vestir casacos encarnados imaginem da cor que se pintará o mediterrânico Nunôt
- Se contarmos com Cuba um Brasil explosivo
atolado de feridas sociais e uma América latina em polvorosa os americanos
perdem a hegemonia à escala mundial e a Abertura 1812 de Pyotr Ilyich
Tchaikosvky vira Hino Planetário
Manulino
desanuviava em momentos como aquele; os amigos eram amigos e ele amigo dos seus
amigos. Sem excepção sabia não haver bela sem senão e a vida, que lhe oferecera
muitos privilégios, cobraria através das desavenças com o endiabrado do Ché –
Gaita a quem sai o moço – Sabia das boinas revolucionárias mas desconhecia os
punho erguido nas noites da queima dos charros, os lenços da cor do sangue.
Sabia, talvez porque o filho saía ao pai em muitos aspectos, sobretudo na
teimosia e ser do tipo antes quebrar que torcer; a prova do ditado ter
fundamento não se faria esperar. Sentado à secretária terminava a actualização
do ficheiro de pesca anotando mais um registo com sigla de recorde já que o
total dos quilos da última pescaria ultrapassara os 120 kg, e fechado o dossier
rodou a cadeira ficando de frente para o filho. Reconheceu de imediato a
existência de 2 lança-chamas, tal a crispação no rosto e o brilho no olhar. O
silêncio irrompeu pela sala aproximadamente 45 segundos; como adulto experiente,
há muito interiorizara não ser o mais correcto tratar um filho de 18 anos com 3
pedras na mão ou atitudes ditatoriais, muito menos com rebuçados de mentol,
quase adivinhando ao que viera e por conseguinte nada mais aconselhável que
dar-lhe a iniciativa para abertura das hostilidades.
- Não vou para medicina.
Manulino
nada respondeu. Gestualmente deu-lhe indicação já ter idade para saber com que
linhas se queria coser e levando a mão ao sobrolho tipo continência à moda da
Mocidade Portuguesa deu a entender ser para si assunto encerrado voltando a
posicionar-se virado para a secretária; abriu um segundo dossier e rabiscou
umas quantas frases que o filho nunca leria, pelo menos enquanto vivesse e
fosse detentor das suas faculdades, nem se dando ao trabalho de espreitar por
cima do ombro a verificar se já tinha desopilado. Dois anos mais tarde, como
querendo confirmar o que o escrevera na tarde em que inequivocamente o desenganara
quanto à vocação académica, virão filho vestir uma farda militar colocando na
cabeça uma boina que não tinha as cores das próprias convicções. Tal como
previra e terminara o escrito, o orgulho seria a arma mais poderosa ao longo da
vida dele mesmo que tal qualidade o fizesse perder a guerra como os americanos a
perderam no Vietename. Seis meses depois, iniciava o ano 1975, Manulino
sentava-se à varanda principal da sua vivenda com vistas para uma das avenidas
mais conhecidas da cidade onde vivia e, em vez de ter posto a girar na sua mais
recente aparelhagem a Abertura 1812, permitiu que se ouvisse no passeios do
lado contrário o tenor Luciano Pavarotti no papel de Radamés cantando uma área
da ópera de Giuseppi Verdi, memorizando os gestos que um transeunte fizera ao
escutar «Se quel guerrieri io fossi…Celesta Aida»
Inácio
13-14 Agosto
2015
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