sexta-feira, agosto 30, 2013

Anastásio...

Anastásio 



Fizera em Março nove anos que Anastásio mudara de uma vivenda no centro da capital do norte para um prédio de condomínio semi-fechado nos subúrbios da dita, para uma espécie de condomínio semi-fechado cujo prédio era revestido a tijolo de burro quase vidrado, circundado por uma área ajardinada à frente e nas traseiras, prédio que tinha um bom hall de entrada e 2 elevadores. Antes da porta principal havia uma rampa para os carros acederem às garagens, por onde passavam também os moradores no prédio ao lado, e alguns animais que coabitavam no espaço. Entrara pela 1ª vez no prédio e naquela urbe em 2004. No ano seguinte – 2005 – Junho ou Julho, transladou-se para o mesmo prédio uma família de 3 pessoas, casal e uma filha já crescidota com ares de enteada de um deles, pouco comunicativos, que traziam com eles um cão cor castanho-mel rafeiro arraçado de pastor alemão, produtos do de aventuras que metem uma cadela pura com cachorros que proliferam pelas ruas, que podendo filam uma lady de coleira de brilhantes. 

O animal Perrito de nome era portador de apreciável envergadura, bons quadris, pescoço forte, e para cão parecia detentor de carácter e personalidade vincada. Nunca a vizinhança o ouvira ladrar e Anastásio sempre que se cruzasse com o animal olhava-o fixamente por breves momentos à laia de cumprimento – «tás bom pá?...tou sim pá!» – contacto que se reduzia a isso. Aos 52 anos utilizava frequentemente as escadas e numa dessas utilizações via muitas vezes Perrito no seu passeio higiénico, e nunca achara nada de estranho no comportamento do cão até que um dia entrando no prédio viu (para seu espanto) que o cão andava de costas, para trás, desde o início do hall até à porta de entrada do prédio. A cena veio a repetir-se bastas vezes até que um dia perguntou ao dono do animal se o tinham adestrado para tal, obtendo lacónica resposta que o animal andava  assim porque tinha medo de escorregar. Anastásio concluiu ser o cão inteligente – outra curiosidade foi nunca ter visto o cão com corrente e trela, transportando o dono a trela. 

Os anos passavam, o hábito mantinha-se sendo até engraçado vê-lo caminhar assim, e paulatinamente a vizinhança deixou de se admirar, mas Anastásio continuava sempre que a oportunidade se apresentasses a observar o cão e se havia alterações de comportamento no animal e até ver nada. Pelas suas contas o bicho teria 2 anos quando se mudara para aquele condomínio, nunca fora muito expansivo claramente por influência dos donos que pareciam personagens dum filme a preto e branco passado em Slow Motion, o que fez com que aquele adoptasse similar comportamento familiar e pouco a ver com chãos escorregadios. 

Em 2007 o casal tivera mais um filho, menino, engrossando a família, contando Perrito nessa altura 4 anos, dando garantias ao casal ser uma companhia para o menino e uma protecção do tipo guardião dada a pachorra e a maturidade que o animal demonstrava para além de um futuro adversário de correrias. Tal não veio a acontecer até porque o menino, crescendo, demonstrava ser tão molengão quanto aos resto da família coisa que desagradava a Perrito. 

A vida corria veloz para Anastásio, desleixando-se na observação que fazia sistematicamente ao cão, facto que os levara a ser quase cúmplices do género, «mais um passeio com este não passa da cepa torta»...«deixa lá um dia o miúdo começa a correr contigo»….«pois sim amigão o que vale é não saberes ladrar nem ganir»…«pensas tu nem imaginas o quanto tenho ganido a vida toda por falta de pilim» 

Chegado 2012 Anastásio estranhou o facto do pequenote não passear com o cão, agora que contava já 5 anos e era uma boa altura para começar a desenvolver certas capacidades e também porque o animal estava com 10 anos e com a experiência canina evitaria desastres que poderiam ser fatais para a criança. A monotonia familiar seguia numa espécie de agastamento entre os membros, mas sem se notar o envelhecimento de Perrito apesar de continuar com o seu ar de não te rales – aquela gente devia pensar que viveriam 200 anos como as tartarugas, por isso havia de ser como elas – mas faltava-lhes a couraça. 

No início de 2013, qual o espanto de Anastásio ao ver que a família “Trapos” tinha mais um cão – uma espécie de lombriga com orelhas caídas barriga a rasar o chão olhos de carneiro mal morto e um físico tudo contrário aos corredores. Esta aquisição talvez fosse uma birra do puto mas ficaria no segredo da família.  

As saídas começaram a ser a 3, o dono, “Lombrigas” e Perrito, sendo que o dono ia à frente com o cão mais novo e segurando-o pela trela coisas que antes não acontecera com o mais velho que ficava para trás naqueles passeios. 

No pátio que antecedia a entrada do prédio Perrito tentava manter hábitos mas estava a ser impedido pelos do novo animal quase demonstrando uma certa preferência por o mais recente. Notou-se um ligeiro emagrecimento por volta de Abril, Maio, na inversa proporção da gordura acumulada por Lombrigas, de olhar cada vez mais avermelhado dando uma imagem de se meter nos copos, e até o anterior percurso fora alterado para um novo que mais parecia a passerelle da moda canina, em vez da tradicional volta ao prédio pela parte de trás em que existia um paradisíaco terreno ajardinado, reino de Perrito desde que ali chegara. Percebia-se que se definhava a cada dia, e já a ossada dos quadris se mostravam, e todo o aspecto do animal era dum cão deprimido.  

Em finais de Julho ao entrar em casa Anastásio reparou que o cão atravessara o hall andando de frente e sorriu, mas o cão olhou-o quase suplicante como se visse o Doggod, deus dos cães. Já em casa repassou a cena e em breves minutos concluiu que o animal não estava lá muito católico, mas o que mais martelava na cabeça era o novo modo de andar no hall « deve ter perdido o medo vendo o mais pequeno a andar de frente» comentou para si. 

No final de Agosto, por volta das 17:45, terça-feira acalorada o condómino chegara a casa mais cedo que o costume. E mais uma vez deparou com o trio no hall – o dono e o Lombriga  à frente preso pela trela, e atrás Perrito, andando normalmente também mas encostado à parede como se esta fosse uma bengala; acentuava-se a magreza e a expressão era de resignação. Olharam-se fixamente durante 10’’ e o homem optou por alterar a ida para casa e voltou para trás apreciando o “passeio dos tristes” e se dúvidas subsistissem dissiparam-se. Dono e Lombrigas passeavam-se pela frente do prédio enquanto que Perrito desesperava hesitando em dar uma fugida ao antigo domínio. 

Anastásio percebeu um certo – tolo no meio da ponte – e deslocou-se lentamente para as traseiras do prédio desafiando o cão a segui-lo o que veio a aconteceu mal este percebera estar fora do alcance visual da dupla Dono-Lombriga. Foi então que Perrito, de pé, olhando o “amigão” durante breves segundos desviando o olhar e baixando a cabeça começou a emitir sons semelhantes a gemidos humanos. A natureza não dotara os homens de competências para entender a fala dos cães nem outros animais, suas formas de comunicação, mas pelo menos os cães percebiam alguns humanos e as palavras que lhes dirigiam. 

- Que se passa Perrito que tristeza é essa? 
- [auauauauauau] 
(A minha hora está a chegar amigão) 

- Conta lá o que sentes… 
- [auuuuuauauauauauauauauuuu] 
(Envelheci eles e eles agora têm um mais novo é tipo rei da selva) 

- Mas este ensinou-te a andar de frente no hall! 
- [auauau…auauau…au…au…au] 
(Sempre andei de frente sou normal mas gostava de fazer aquela gracinha…) auhauhauh (para chamar atenção dos meus donos) 

- Porque mudaste? 
- [auuuuauuuuauuuuauauau] 
(Quis provar que fazia igual ao ‘arrastadeira’ e ter pelo menos a mesma atenção que ele) 

- Parece que não resultou… 
_[auuuua……au…au…au…auauau…auauau….auauauauauauauauauauauuu...au...auauau – auauau] 
(Pouco importa que pronto morro e até dou graças ao DogGod «deus dos cães conhecias?» não mandarem abater-me ou abandonarem por aí…agora até tenho de fazer as minhas necessidades quando ele precisa…já não tenho direitos) [aui...aui] 

- O teu dono está a chama  
- [auauauuauaua.auuauuauu] 
(vou indo e acredita que a vida de cão só é boa enquanto somos novos...) 

Terminada a conversa em que só um falou, interpretando os aus/aus  decidiu subir até ao apartamento subindo pelas escadas. Sentado na sala pegou no livro Proezas Impossíveis e tirou alguns apontamentos. Surgiam-lhe um milhão de interrogações; concluía serem insustentáveis as teorias que só o Homem tem inteligência e que os afectos não se encontravam nos comportamentos dos animais, desprovidos de carácter e personalidade. Passou em revista todos os seus anteriores cães dos quais não possuía fotografias para além das imagens que deles gravara na memória fotográfica, mas lembrou-se que conservara duas ou três com o gato ao colo – sujeitando-as na ponta dos dedos observou-as minuciosamente. Por cansado deixou-se cair no sofá cama e exclamou: «consegui, consegui falar com o Perrito!»  

Não contaria a ninguém o momento que vivera; gostava que durasse uma eternidade, mas sabia que fazendo-o arriscava-se a que o internassem. Fechou os olhos e adormeceu. 


FIM

28/8/2013


Sem comentários:

 
Web Analytics