Nuvens avermelhadas
NUVENS AVERMELHADAS
Sentado numa laje sobranceira à maior fenda da Tundavala a cerca de 1.200
metros acima das águas do mar sabia que para lá do que a vista alcançava
descaído sobre a esquerda havia um deserto onde a natureza depositara uma
espécie rara, única, denominada Welwitchia Mirabilis, encostado à cidade de
Moçâmedes onde tantas vezes se deleitava nas praias quentes e de águas
límpidas. Nas costas ficava a Huíla a Nª Sª do Monte, a piscina de água
corrente o céu azul e um certo friozinho nas noites de cacimbo.
Rolou a cabeça
a cabeça mais para norte e quase pressentia o barulho da capital da província,
a azáfama do porto e do aeroporto, a vida asfixiante do vai e vem constante de
veículos, bares nocturnos. Do outro lado do atlântico havia um país que não
conhecia mas cheirava que quem lá viva não era de fiar, tudo por meras
conversas escutadas entre camaradas – ao contrário gostava das gentes daquela
província que adoptara para ser a sua 2ª terra. Sob o seus pés a linha de
caminho de ferro, o serpentear da estrada o mato, e a selva desconhecida.
Estava de facto em África.
Gervásio Sério, casado, pai de uma menina de com 2 anos, natural duma
pequena aldeia do distrito da Guarda do Portugal Imperial fora incorporado em
19 66 para combater os terroristas armados até aos dentes e que se tinham
revoltado contra a pátria opressora com a ajuda estrangeira, mas por graça
divina tinha saído ileso de todas as saídas para zona de combate – assentara
praça como soldado raso que as suas habilitações a mais não permitiam – De
regresso ao continente de pois de 48 meses de serviço militar obrigatório,
restava arranjar emprego pago a preço de avo, emigrar a salto, carregar baldes
de fezes trabalhando numa qualquer Junta de uma qualquer cidade do interior.
Não ponderara voltar a Angola mas com o decorrer do tempo e as dificuldades de
obter um modo de vida que se adequasse às suas aspirações, esta opção começava
a germinar.
Com a morte do ditador as coisas pareciam menos negras que no tempo em
que por lá andara envergando a farda do exército, por isso já não excluía o
embarque num paquete ou mesmo nos modernos Boeing da TAP – e que essa aventura
terminaria por dar um futuro risonho para si e restante família – daí
estabelecer-se numa povoação do interior era já uma certeza, abraçando o negócio
de comercio, bar e mercearia e ir crescendo aos poucos, já que o pessoal que
conhecera anteriormente e do tempo da guerra para além de serem bons pagadores
aliavam o facto de serem bons compinchas nas noites de sexta e sábados e a cor
nunca for barreira à amizade criada com alguns. Da decisão à concretização
passara-se 2 anos. Estava-se em 1972, malas aviadas e despedia-se da mulher e
restante família em Lisboa embarcando do
porto Alcântara rumo ao hemisfério sul. – ia à frente para preparar
cuidadosamente e sem sobressaltos a posterior ida da mulher e filha. Apesar de
humildes os pais garantiam que nada faltaria a nora e neta, e ainda o ajudaram
com algumas despesas extras e isso dava-lhe tranquilidade
Gervásio era homem
de trabalho e aos 27 anos nada lhe metia medo. Rapidamente, chegado à província
da Huíla procurara com a ajuda de um ex-camarada de armas encontrando um sítio
e instalações que agradavam de sobremaneira sabendo que o início de negócio
seria facilitado por alguns conhecidos e malta que se dedicava ao comércio da
transacção diamantífera pela fronteira do Namibe e outras que se desconheciam à
data.
O ano fora de facto
fantástico razão para escrever umas magras linhas à mulher a contar o sucesso e
que se preparasse para conhecer África – considerou-se um homem de sorte,
ganhara a aposta, tinha posto de parte algum dinheiro e fecharia o
estabelecimento no fim de semana seguinte não sem antes deixar os clientes
fornecidos do que necessitassem. Marcava o calendário 1 de Dezembro de 1973
quando se preparou para se deslocar à capital afim de esperar a família vinda
da metrópole – a alegria era extensiva a todos na povoação especialmente por
parte de Manhê Cavaigolo e Zumbi Caxipede, chefes de famíla que viam na vinda
da senhora do amigo oportunidades para que as suas mulheres aprendessem a
cozinhar uma coisas boas e outras lides importantes para a casa e útil no
futuro – gostavam de Gervásio, conheceram-se na tropa e mesmo que não fosse de
fiar os anos de BI eram da mesma idade.
Partiria para a capital
na manhã seguinte, razão de ter tirado a tarde já depois de encerrado a loja e
fora espairecer para a Tundavala. Sonhava como qualquer homem, marido e pai
extremoso com o reencontro, por longa ser sempre a ausência – o0lhando o céu
percebeu umas nuvens pequenas que não seriam expectável naquele dia e naquela
altura do ano com apenas 2 meses e ½ de verão face à limpidez com que se
apresentara o dia sobretudo ao bater das 11:00. O que mais chamou à atenção
fora a tonalidade cinzenta avermelhada das nuvens, e o desenho que faziam entre
si, parecendo as ferramentas das ceifeira alentejanas e dos martelos dos
ferreiros, mas atribuiu tal facto à alegria e aum copito extra a que se dera ao
luxo, e que algum cliente acabaria por cobrir o prejuízo.
Comprara um carro
novo, em 2ª mão, num stand de um amigo recente mas que eram da mesma zona de
Portugal, tendo este condescendido receber os 50 contos em prestações sem juros
nem empréstimos bancário, bastando-lhe a palavra, mas nada disto dera a
conhecer à família. A carta tirara-a felizmente como militar poupando uns
contos extra numa escola privada e arriscando-se a pagar dobrado se chumbasse.
Rápido chegaria o
Natal; _ seria uma festa. Dona Emengarda
Séria depressa se adoptara aos trilhos, à terra batida, às picadas dos
mosquitos e à conversa sem fim de Sizémia ‘Juta’ Cavaigolo e Périódica
Caxipede, que falavam pelos cotovelos apesar da maior parte dos casos não
perceber patavina do que diziam. Passagem de ano, garrafas para comemorar e
ei-los em 1974. Chegou Fevereiro, Carnaval, 4ª de cinzas, festa, dança, suor,
que o calor apertava e a temperatura ainda subiria mais até Março
prolongando-se pelos meses de Abril e Maio. Era de aproveitar para uns
mergulhos de água salgada.
Emengrada, boa
esposa, incentivara o marido a mandar vir os sogros, dado que os seus pais
tinham falecido, e até podia ser que montassem uma pensão. Ela apenas tinha uma
irmã mais velha e solteira, e não descurava a hipótese de a ver acasalada com
Antero Silva Penado, um dos melhores clientes e que levava um táxi por conta
própria e que podia juntar os trapinhos com a mana.
Veio a Páscoa, as amêndoas,
amigos a crescer negócio a florescer e o que pensara concretizar-se ia para a
2ª metade do ano. Metera a irmã trocando correspondência com Antero e o
resultado seria casamento por procuração.
No dia 24 de Abril
de 1974, jantavam em casa dos Sério a maior parte dos amigos arranjados por
aquelas bandas entre eles os mais novos, a família Vissorino e a Silvano. O
casdal iria anunciar a chegada dos pais de Gervásio a irmã de Emengarad futura
esposa de Antero, e a grande novidade – a gravidez de Emengarda já com 2 meses
– o bebé viria no bico da cegonha sem saberem se menino ou menina. Périódica
Caxipede, fez de imediato uma reza, deu três voltas à mesa e exclamou sem
margem para erro. «Pela curva da mama direita da prenha é minino!». Palmas para
a macumbeira que não cabia de inchada dentro dos panos tal o contentamento.
Em Março de 1975,
Gervásio e Emengarda carregavam uma menina de 4 anos aproximadamente pela mão,
e um bebé ao colo com pouco mais de 5 meses, e pretendiam despachar alguns
caixotes para Portugal contendo coisas pessoais, entre elas fraldas, bibes, e
roupa de bebé de cor azul – o homem ia deixar a salvo a família, longe dos
conflitos que se agudizavam, mas regressava para continuar o negócio, deixando
a esposa e filhos em casa dos pais até que a situação acalmasse e desse
garantias de haver paz medicamentos e alimentação para os filhos. Regressava à
Huila 15 dias depois de ter embarcado.
Na 1ª terça feira do
Outubro já quente, oficial de serviço ao terminal de carga do aeroporto atendia
um homem com ar abatido, barba por fazer, um pouco sujo até. Queria embarcar
alguns pertences para Portugal, coisitas sem valor mas que eram sua e ganhas com
honestidade. Contou ao oficial à laia de descompressão meio lamento meia raiva
quase a roçar o ódio sobre o que lhe acontecera, e ao vexame que passara ao
sair do aeroporto da Portela onde fora acusado de de racista, explorador, e
outros insultos que jamais pensara escutar, sobretudo de familiares afastados.
O oficial, depois de pesar as caixas, pediu para que o acompanhasse aos
serviços da alfândega e depois teria de cumprir as formalidades para o
embarque. Aproveitando a conversa adiantou que não desse trela a certa malta e
que o importante era a família e ele estarem juntos e bem e que por estranho
que parecesse a cara dele não era de todo estranha não se recordando donde nem
de que altura e sossegou-o
- Também não será por isso que muda o
atendimento!
- Estive cá com a minha mulher e dois filhos
e foi o senhor que nos atendeu na altura…
- Possível mas sabe são milhares de caras que
passam por este aeroporto desde o início da debandada!
- É natural que não se lembre – vai ficar? –
se partir para Portugal procure-nos aquilo não é assim tão grande!
- Obrigado vamos preencher a papelada e como
deve saber preciso do nome de quem levanta os caixotes no destino…
- Gervásio Sério!
Já se afastava em
direcção ao edifício de embarque quando ouviu o oficial chamá-lo.
- Senhor Sério… esqueceu-se da carta de
porte!
Fim
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