quarta-feira, fevereiro 01, 2017

Homenageando... Rui Veloso




FORA ENGANO, ACONTECEU


Deu ocupação permutando próprio sorriso,
a alma e tudo o que remanescente foi preciso
para a ver venturosa, para vê-la saudável,
ser seu servo, servindo-a,  ser-lhe prestável
partindo para renovado descobrimento
a terras onde a paz conquistada foi tormento
depois de segura ‘gume de afiada baioneta,
canhões, zagaias, tiros limpos de escopeta
banhando a terra com sangue humano,
que nos mares Adamastor fora puro engano;
_ e sem Índias, sinalização, uso de tabuletas
ultrapassado tempo das velhas ampulhetas
lendo ‘eternidade numa obra sublime
que libertado o espírito chega, comprime
mancha entre rimas desusadas, causa dor,
em cada verso na ausência, vencido o pavor.
- Do infortúnio nasce de igual sofrimento
o poeta, que ganhando lutos no padecimento,
redesenha multicolor a bandeira da traição
palmilhando insidiosas estradas da desilusão.
***
Reaberto os livros que consagram heróis
transmutam ‘deserto em campos de girassóis
dão renovado sentido à velha literatura
versejando a honra no convívio com a loucura
cada sílaba das palavras que não disse
colocado em escrito o que outrora se predisse.
- Civilizado bardo traz ao palco da nova ribalta
líricos olvidados pela ignorância duma malta
que fez da pátria mãe mercado de interesses
com gráficos estatísticos todos ‘santos meses
vendendo-a (nem sempre) pela melhor oferta
deixando franqueada sempre ‘porta aberta
à rapina, a troco apenas de uma segurança
que só deles (dos inimigos) merece confiança
atirando à desgraça porção de um povo
a soldo de idealismos e tretas sem louvo.
- Acorrentado à pobreza, eis que novo poeta
vê-se desviado da procura, a última meta,
privado de contender contra francos pesadelos
que engendraram emaranhados novelos.
***
Da tristeza em horas de angústia já exaustivo
viu consumar-se de razões tão duro motivo,
dum afastamento com símbolo de repúdio
que testemunhou (por fim) não ser só dúbio
mas bem real os pergaminhos da pobreza
que nem todos ‘nobres vindos são da realeza.
- Esperando chis duma ausente em dia de anos
desencantado com ‘selvajaria dos humanos
do alto da escadaria ouvia concertos de Chopin
lendo Bernardo de Claraval e histórias de Batman,


heróis que acreditava trazerem-lha acalmia
ante relâmpagos que mudavam a noite em dia;
_ agarrado ao travesseiro, tremia confundido
aniquilando sombras do tecto, emudecido,
sonhava ser órfão duma história mal contada
acreditando afinal ser a mãe dedicada fada
bem fazente nos países dum planeta distante,
e querendo, ao estalar dedos viria num instante,
cobri-lo de beijos igual ‘qualquer outro amigo
em tempo de medo, ele sem encontrar abrigo.
***
Crescido viu serem contos ideadas invenções
colorindo ‘época dos jogos em quedes e calções,
sem regras escritas, árbitros, tendo como juiz
o que garatujava nas lousas do colégio com giz.
- Montou o cavalo alado procurou o ‘arquê’
derruindo ‘alma  vacilação do dogma do porquê
e sem se importar com a ideia contemplativa
observou-se ‘auriga’ moderador sem divisa
que só o que se vê terá por base definição
e ele nunca vira, nem por analógica colação.
- Sentiu a ausência de si, sem corpo sem forma
ginete desventurado que se não conforma
escrevendo no íntimo ampliadas parábolas
oponenciando-as com conhecidas rábulas;
_ sem achar para ‘desventura lição harmoniosa
vê que nem sempre a melhor pureza é rosa
a falha da ‘anámnesis’ dita a impaciência,
e a temperança refreia renovada imprudência.
- Liberto de uma ideia quase ‘estamentária’
rechaça antagonismos vindos de gente pária,
e um dia, percebe ser a métrica passageira
mais que a dor; _ desta desconhece fronteira!

***
Fechados ‘cadernos duma sapiência académica
assume-s’em verso contrapondo com métrica
razões que à razão não assiste fundamentação,
o pecado original transita da filosofia à religião
e perde-se na mestra arcádia do quotidiano;
- Que mor acepção para todo o desengano?
- Rasga-se-lhe a castradura da indiferença,
pinta a negro ‘revolta, muda a cor da crença
e sem anuência confecciona novas balalaicas,
arremessando balas de tinta às concepções laicas
que o amor é trevo com pétalas ressequidas
e a esperança mortalha de quimeras fenecidas.
- Finalmente percebe sentido de ‘flatus vocis’,
jornadeia com estranhos por distintas polis
e encontrando substituta para veneração
retira as ligaduras que amordaçam o coração,
arruma a melancolia num lugar de garagem,
despede-se do passado, compra viagem,
sem reparar que o bilhete fora perdido na rua
duma cidade distante sombria, quase nua.



Cito Loio
19 a 20/9/2015









Arquê = (princípio)
Auriga = (comando)
Anámnesis  = (recordação)
Estamentária  = (por classes)
Flatus vocis = (palavras ocas)
Polis = (cidades)

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