Mentirosa
MENTIROSA
(Do tempo dos biberões de vidro)
Parte
desta história foi contada por uma senhora que ia envelhecendo pelas arrelias
causadas pelo neto candengue mas que quase sempre desculpava às vezes protegia
vá saber-se porquê. A outra confidenciou-ma um amigo de sempre que foi
crescendo comigo, arquivando numa só memória muitas estroinices passadas
juntos, e mantendo sigilo para evitar queixas ao ministério público decidi
atribuir um nome fictício ao personagem principal e que será na extensão do
conto o Reguila Candengue.
Todos
a postos para engolirem o conteúdo? Comecemos então a narrativa.
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I
O
personagem ocupava naquele tempo o quarto da frente da vivenda que dava para a
avenida principal com varanda para a perdição, e mesmo que não conseguisse ver
todas as vizinhas a vestirem os pijamas através dos cortinados das largas
janelas deixava vaguear a mente de criança pelo imaginário depois de
desfolhadas revistas da Playboy ou coisa parecida, ou ainda visualizando filmes
de 8 mm com cenas porno proibidas para a idade; mas como miúdo estava, como os
seus amigos, catando-se para a pidesca ou um qualquer cipaio armado em polícia
política do Estado Novo.
O
quarto (convém referir) tinha 3 janelas e duas portas, aliás como seria natural
pois ninguém estará a imaginar um gajo entrar no dormitório pela “varanda”, e
numa área útil de cerca de 30 m2 coisa grande para hoje normal para o passado,
equipado com cama guarda-fatos cómoda mesa-de-cabeceira e espaço para dominar a
bola quando lhe desse na telha, paredes pintadas de creme encardido com tanto
chuto, candeeiro de tecto ou lustre em risco para além de cortinas curiosamente
sempre abertas, razão que se desconhece.
Para
ir do quarto para o resto da mansão, chamo-lhe assim para dar um ar snob ao
Reguila, havia várias opções, e como os leitores modernos apreciam palha nos
conteúdos dos romances e coisas que tais, explanarei as vias de acesso, mas
depois não digam ser enfadonho este tipo de descrição.
Comecemos
pela «Via A» o acesso mais protegido pois como descrito o quarto tinha duas
portas e uma delas, a desta via, dava para os aposentos do pai que por sua vez
ligava-se a um corredor onde fora colocado um cesto de papéis aramado no umbral
da porta que dava para o salão envidraçado para que o sacaninha pudesse
executar cestos de meia distância e afundanços tipo NBA, pois o man era maluco
por basket para além de futebol-de-quintal-ou-de-largo, calça aos matondos (não
sabem o que é e ficam a saber o mesmo pois não desvendo, enfim tudo o que lhe
desse gozo sem ditadoras de régua em punho muito menos numa sala de aulas do
colégio privado em que andava, unidade de ensino com óptimas professoras
melhores coleguinhas já que mesmo aos nove anos um tipo como ele gostava de
olhar os caniços das meninas.
A
«Via B» era pela porta que dava acesso à tal varanda, térrea, que por sua vez
apresentava 3 opções; B1 descida pelas escadas da esquerda e que davam para a
parte do quintal onde costumava jogar as futeboladas com amigos e os cães,
ladear depois a vivenda (agora facilito a escrita) e entrar para o salão pelas
porta da cozinha exterior enquanto que a opção B2 seria descer as escadas do
lado direito da varanda e fazer o percurso no lado contrário ao descrito em B1.
Havia outras Bñ mas eram a conjugação das anteriores e a sua explanação nada
aporta de interesse à história muito menos ao que de facto este conto encerrar,
podendo no entanto quem quiser imaginar o miúdo a subir ao telhado para chegar
ao destino, partir uma telha e levar com o avô a correr atrás do fedelho de
vassoura em riste, e o desalmado a rir-se, isto na melhor das hipóteses pois às
vezes o azar bate à porta e uma queda da altura de 5/6 metros ou mais pode ser
fatal, mas a verdade é que tal nunca aconteceu, pois se bem que o personagem
fosse desabrido não constava que fosse tolo.
Não
passava no fundo de um dos muitos meninos que o sol do hemisfério sul torrara a
pele, que se sentava à volta da fogueira, tendo também um olhar brilhante quer
oferecia natural encanto e em simultâneo uma expressão estranhamente amarga
quando se aproximava do guarda-fatos colocado num dos cantos do quarto. Por
vezes, em tardes de Domingo isolava-se enxotando o papão antes de abrir o gavetão
dado não querer partilhar com o demónio as fotos guardadas entre livros de
colecção 6 balas contos do Batman Super-Homem ou Tarzan, e pegando numa foto
rolava pelo chão encerado, sem ficar farto. Eram momentos de revolta agnóstica
descobrindo-se na fronte ainda sem rugas o sítio onde um dia se poderia ver a
cor e o formato da tristeza.
Ninguém
diria, nem eu, aliás como todos os seus amiguinhos, que aquele miúdo que
soltava contagiantes gargalhadas secretamente as matizasse com uma dor
enigmática. À sua volta tinham erguido uma espécie de muralha da China
separando a infância do holocausto que constituíra o seu nascimento, uma
protecção divina com base num Deus que ele crescendo foi-lhe decretando morte
anunciada por execução irrevogável, não obstante as bíblias proliferarem pela
casa e no quadro da Última Ceia onde estranhava só estarem homens julgando que
as mulheres ainda estavam na cozinha a preparar a janta para aqueles marmanjões
com ar de pescadores das bancas do mercado Vaticano, somado ao facto de a cada
sábado a avó ir à missa numa igreja que distava 3 minutos de casa (para ele) em
passo caracol, e as beatas alaparem de tarde para lanches sempre às expensas do
mesmo Cristo neste caso Crista.
Porém,
naquele sábado, um qualquer basta consultarem um calendário da década de 60 e
ficam a saber quantos havia no ano, a Pietá de Michelangelo mesmo esculpida em
pedra levantaria o pano que cobria o regaço para limpar uma gota teimosa que
havia de refrescar o rosto empedernido. Pelas fotos, nos livros do pai, Reguila
já visionara as pinturas da Capela Sistina e muitas outras obras clássicas e
renascentistas que o impressionavam e sentia-se pequenino perante a grandeza do
génio e talento daqueles artistas, não era que fosse um desprovido de engenho,
mas a maior apetência comprovava-se por “deixar para amanhã que outros farão”
algo inventara para contrariar o ditado popular que escutara cento de vezes a
avó, mas que só para ser do contra tratou de adulterar.
Naquele
dia a foto que segurava na mão, em tamanho gigante comparada com outras que
sacara da secretária do pai estava a provocar-lhe comichão, um certo dejá vu,
reflexo da sua fronha no espelho do quarto de banho (que esse objecto estava
impedido de coabitar no quarto de dormir por sujeito a estilhaçar-se com uma
bolada certeira num remate contra um keeper imaginário) e acima de tudo uma
expressão idêntica à da sua tia moreninha não obstante que pelo cabelo não
conseguia tirar-lhe a pinta. Como não conseguia decifrar o enigma daquele rosto
de homem já calvo optou por devolvê-lo à procedência antes que caísse a estátua
da Maria da Fonte ou uma bomba rebentasse no palácio do Gungunhana, e sarilhos
já ia ter mal o avô e desse conta que lhe rasgara o jornal do dia.
A
tarde convidava a uma ida ao cinema dos putos, um filme para maiores de 6 anos
baleizão no intervalo, mas não corria nada de jeito próprio para a idade, por
isso a opção passava por o pessoal se juntar no largo do Radio Clube e curtir
uma futebolada no alcatrão antes que começasse a chegar o pessoal com os coches
para irem à matiné das do Tropical antecedida por uma espécie de baile das
sopeiras. A reunião fora agendada para as 16 horas, e se começasse a tempo dava
duas horas e pico para disputarem o tremuno, se bem que 1 bastasse pois o que
era demais chateava e as energias podiam faltar para subir ao muro que separa o
Benfica do pátio do cinema e daí desfrutarem com cochichos os roços de coxas
das parelhas ao som de Smoke Gets in Your Eyes dos Platters. Para eles o
espectáculo para além de grátis dava mais pica que filmes da Marisol.
Restava
uma hora para se aperaltar, calção camisola ½ manga, quedes sanjo, e um
pullover para o fim de tarde que no final de Julho o tempo já se apresentava
frescote. Claro que antes de sair convinha sacar 10 paus à velhota para uma
Bola de Berlim e uma Seven-Up ou Mission Laranja no bar do BL e daí o money –
podia estar no encontro um dos criados do pessoal e o negão não ter cumbu para
lanches e isso era coisa que o incomodava – o lema de d'Artagnan era para ser
extensivo também à malta da bitacaia. Só depois de confirmar tudo no seu sítio,
os heróis de banda desenhada na estante, o cão a sacar uma soneca na casota ou
à sombra do Coqueiro zarparia para o improvisado recinto de jogo distante de
casa 5 minutos a passo de lesma em que só teria de ter cautela ao atravessar um
cruzamento (quase me atreveria a dizer 600 m era percurso que teria de cobrir).
A
avó encontrava-se na varanda descansando na sua cadeira de repouso, nada de
balanço que o velha não gostava, preparada para mais uma leitura dumas quantas
páginas do Velho Testamento encharcadas de dogmas que só ela decifrava e
contestaria se estivesse para aí virada, sabendo incluso o valor acrescentado
que aquelas “cantadas” traziam que fazia enorme confusão a Reguila dado que
naquele livro o Cristo e os Apóstolos não usavam roupas iguais à do Mandrake, e
por tal não podiam fazer truques de multiplicação dos pães, apesar de já
acreditar que podiam andar sobres as águas do mar da Galileia pois Jesus sabia
o caminho das rochas submersas o que evitou Pedrocas morrer afogado e tomar o
caminho do reino dos mortais. Interessava-lhe contudo, naquele momento, sacar o
pilim à velhota e dar de fosques por isso chegara a altura de se aviar em terra
que a maré estava a subir e os amigos, se não aparecesse a tempo,
substituíam-no por um primo chegado naquele fim-de-semana dos confins do
inferno.
Perfilado
perante a avó, que naquele tempo não era tão como se pudesse julgar, reparou que
a bíblia estava aberta sobre o colo mostrando um retrato de mulher e armado em
engraçadinho perguntou.
-
Quem é essa senhora?
Havia
matéria que nem o Diabo se atreveria a brincar com aquela mulher sem levar
troco, e num sorriso matreiro sabendo que o picanço não ficaria por aí, olhou
para a imagem, passou a mão por cima quase afagando-a e respondeu
-
É a Virgem Maria… a mãe de Jesus Cristo!
Fechado
o livro sagrado recostou-se ainda mais aguardando o disparate seguinte –
conhecia o fedelho por dentro e por fora e não se enganaria com a matreirice do
menino mas estava há muito preparada para dar respostas que nem Platão
Aristóteles ou Judas Iscariote tinham capacidade intelectual para as processar.
Ergueu ligeiramente o tronco fitando-o dos pés à cabeça que pelo tamanho do
pirralho bastava 1 segundo vendo que por detrás daqueles olhos que tão bem
conhecia a proveniência o que viria era uma resposta azeda ou uma pergunta do
arco da velha.
-
Mãe…onde está a minha mãe!
II
Há
verdades que não são necessárias que as contemos e ela pelos anos experiência e
pela dor de tanta perda sabia que o neto aprenderia com o tempo a distinguir o
bem do mal a liberdade da ignorância à prisão da sabedoria. Os caminhos que
trilhasse jamais podia modificá-los, mas seria sempre a mão enquanto o seu
frágil coração o permitisse – escondera-lhe que tomava medicação algo que
pressupostamente não traria ganho ao puto. A 1ª guerra contra a Alemanha, os
disparates da 1ª república, os desgostos de alguns falecimentos indesejados e a
destempo os 5 filhos que criara e especialmente aquele desalmado não lhe
proporcionaram um coração isento de perigos.
A
calma no estágio absoluto era apanágio dela mas mentiria se negasse ter sentido
uma guinada no peito, um tremer de Maria ajoelhada perante a cruz onde estava
pregado Cristo agonizante. Não tanto pela pergunta em si o florar duma certa
dor de um luto encapotado mas pela forma e timbre da interpelação. De facto
fora mais que uma inocente pergunta, dir-se-ia ter sido uma confissão de (eu
sei mas conta-me uma mentira que as verdades ferem) e antes de contestar olhou
para os vasos com avencas e fetos o céu para o lado nascente e respondeu
exactamente o que ele queira ouvir
-
A tua mãe foi morar numa casa pertinho do céu e coo tenho uma chave quendo
cresceres entrego-ta
Mais
curta fora a guerra das estrelas que o silêncio que se instalou antes do neto
falar
-
Um dia descubro onde fica a casa e quando lá chegar não preciso de chaves entro
pela janela dê-me 20 escudos vou jogar futebol no largo do Tropical
Seguidamente
resmungou algo ininteligível e dirigiu-se ao quarto. Esquecera-se do boné se
bem que na época dispensava-se e parado junto à cama deixou-se cair de costas e
fixando o tecto pareceu-lhe ver a sombra dum rosto de mulher o mesmo tempo que
se permitia um sorriso indefinido a aflorar no rosto exclamado – Velha
mentirosa!
Faltavam
apenas 12 minutos para a hora combinada com os amigos. Deu um salto e saiu
deixando a porta aberta, a que dava para a varanda onde a avó ainda se mantinha
repousada não reparando que ela apresentava um sorriso trocista pois escutara a
exclamação. Podia ser por vezes convenientemente distraída, condescendente até
mas de surda nada tinha dizendo-lhe à laia dum até logo ficava-te bem – Se
vieres tarde jantas com o cão!
Quando
Reguila entrou no parque de estacionamento do Tropical já o pessoal preparava
as balizas, e como não havia guarda-redes naqueles jogos as mesmas tinham
apenas 1 metro de largura. Caminhava sereno, um certo ar de David enfrentando
Golias e no rosto ligeiro traço de enfado evitando contudo deixar transparecer
o que lhe i na alma. Não ficara agradado com a resposta da avó mas também sendo
muito novo sobrava-lhe tempo para saber a verdade dado não ser menino para
engolir histórias da Alice no País das Maravilhas e a Branca de Neve gostar ou
não de anões porque conhecia a velocidade com que Bill The Kid sacava o
revólver e a cor das divisas do General Custer. Desconfiava que lhe escondiam
algo de sua mãe, que a velha só era “mãe de verdade” e não de registo de
nascimento e se tal o incomodava 99% do tempo não deixava transparecer esse
tipo de desconfiança açucarada com uma taça de mousse de chocolate, e já no
meio dos amigos, deixando que a boca se rasgasse num sorriso disparou.
-
Madiés depois do futebol vamos às bolas de Berlim?
III
O
que vos contei é quase tudo verdade e envolve um amigo do tempo das fraldas de
pano em que nos alimentávamos a biberão de vidro mistura de leite em pó com
água fervida numa cafeteira de alumínio, não deixando de ser um pequeno conto
para alegrar a memória, história banal igual a tantas outras que como esta não
ganham prémios nem são badaladas nas Tvs mas marcaram o protagonista, que
despida a farda de miúdo fez-se home m de verdade.
Fim
Inicio
a 28 de Junho terminado a 21 de Julho de 2015
Inácio
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