Anastásio...
Anastásio
Fizera em Março nove anos que Anastásio mudara de uma vivenda no centro da capital do
norte para um prédio de condomínio semi-fechado nos subúrbios da dita, para uma espécie de condomínio semi-fechado cujo
prédio era
revestido a tijolo de burro quase vidrado, circundado por uma área ajardinada à
frente e nas traseiras, prédio que tinha um bom hall de entrada e 2 elevadores.
Antes da porta principal havia uma rampa para os carros acederem às garagens,
por onde passavam também os moradores no prédio ao lado, e alguns animais que
coabitavam no espaço. Entrara pela 1ª vez no prédio e naquela urbe em 2004. No
ano seguinte – 2005 – Junho ou Julho, transladou-se para o mesmo prédio uma
família de 3 pessoas, casal e uma filha já crescidota com
ares de enteada de um deles, pouco comunicativos, que traziam com eles um cão
cor castanho-mel rafeiro arraçado de pastor alemão, produtos do
de aventuras que metem uma cadela pura com cachorros que proliferam pelas ruas,
que podendo filam uma lady de
coleira de brilhantes.
O animal Perrito de nome era portador de apreciável envergadura, bons
quadris, pescoço forte, e para cão parecia detentor de carácter e personalidade
vincada. Nunca a vizinhança o ouvira ladrar e Anastásio sempre que se cruzasse com o animal olhava-o
fixamente por breves momentos à laia de cumprimento – «tás bom
pá?...tou sim
pá!» – contacto que se reduzia a isso. Aos 52 anos utilizava frequentemente as escadas e
numa dessas utilizações via muitas vezes Perrito no
seu passeio higiénico, e nunca achara nada de estranho no comportamento do cão
até que um dia entrando no prédio viu (para seu espanto) que o cão andava de
costas, para trás, desde o início do hall até à
porta de entrada do prédio. A cena veio a repetir-se bastas vezes até que
um dia perguntou ao dono do animal se o tinham adestrado para tal, obtendo
lacónica resposta que o animal andava assim porque tinha medo de escorregar. Anastásio concluiu
ser o cão inteligente – outra curiosidade foi nunca ter visto o cão com
corrente e trela, transportando o dono a trela.
Os anos passavam, o hábito mantinha-se sendo
até engraçado vê-lo caminhar assim, e paulatinamente a vizinhança deixou de se
admirar, mas Anastásio continuava sempre que a oportunidade se apresentasses a
observar o cão e se havia alterações de comportamento no animal e até ver nada. Pelas
suas contas o bicho teria 2 anos quando se mudara para aquele condomínio, nunca
fora muito expansivo claramente por influência dos donos que pareciam
personagens dum filme a preto e branco passado em Slow Motion, o que fez com que aquele adoptasse similar comportamento familiar e pouco a ver
com chãos escorregadios.
Em 2007 o casal tivera mais um filho, menino,
engrossando a família, contando Perrito nessa
altura 4 anos, dando garantias ao casal ser uma companhia para o menino e uma protecção do tipo guardião dada a pachorra e a
maturidade que o animal demonstrava para além de um futuro adversário de
correrias. Tal não veio a acontecer até porque o menino, crescendo, demonstrava
ser tão molengão quanto aos resto da família coisa que desagradava a Perrito.
A vida corria veloz para Anastásio, desleixando-se na observação que fazia
sistematicamente ao cão, facto que os levara a ser quase cúmplices do género,
«mais um passeio com este não passa da cepa torta»...«deixa lá um dia o miúdo
começa a correr contigo»….«pois sim “amigão” o que vale é não saberes ladrar nem
ganir»…«pensas tu nem imaginas o quanto tenho ganido a vida toda por falta de
pilim»
Chegado 2012 Anastásio estranhou
o facto do pequenote não passear com o cão, agora que contava já 5 anos e era
uma boa altura para começar a desenvolver certas capacidades e também porque o
animal estava com 10 anos e com a experiência canina evitaria desastres que
poderiam ser fatais para a criança. A monotonia familiar seguia numa espécie de
agastamento entre os membros, mas sem se notar o envelhecimento de Perrito apesar
de continuar com o seu ar de não te rales – aquela gente devia pensar que
viveriam 200 anos como as tartarugas, por isso havia de ser como elas – mas
faltava-lhes a couraça.
No início de 2013, qual o espanto de Anastásio ao
ver que a família “Trapos” tinha mais um cão – uma espécie de lombriga com
orelhas caídas barriga a rasar o chão olhos de carneiro mal morto e um físico
tudo contrário aos corredores. Esta aquisição talvez fosse uma birra do puto
mas ficaria no segredo da família.
As saídas começaram a ser a 3, o dono,
“Lombrigas” e Perrito, sendo que o dono ia à frente com o cão mais novo e segurando-o pela trela
coisas que antes não
acontecera com o mais velho que ficava para trás naqueles passeios.
No pátio que antecedia a entrada do prédio Perrito tentava
manter hábitos mas estava a ser impedido pelos do novo animal quase
demonstrando uma certa preferência por o mais recente. Notou-se um ligeiro
emagrecimento por volta de Abril, Maio, na inversa proporção da gordura
acumulada por Lombrigas, de olhar cada vez mais avermelhado dando uma imagem de
se meter nos copos, e até o anterior percurso fora alterado para um novo que
mais parecia a passerelle da moda canina, em vez da tradicional volta ao prédio
pela parte de trás em que existia um paradisíaco terreno ajardinado, reino de Perrito desde
que ali chegara. Percebia-se que se definhava a cada dia, e já a ossada dos
quadris se mostravam, e todo o aspecto do
animal era dum cão deprimido.
Em finais de Julho ao entrar em casa Anastásio reparou
que o cão atravessara o hall andando de frente e sorriu, mas o cão olhou-o quase suplicante como se visse o Doggod, deus dos cães. Já em casa repassou a
cena e em breves minutos concluiu que o animal não estava lá muito católico,
mas o que mais martelava na cabeça era o novo modo de andar no hall « deve ter
perdido o medo vendo o mais pequeno a andar de frente» comentou para si.
No final de Agosto, por volta das 17:45, terça-feira acalorada o condómino chegara a casa mais cedo que o costume. E mais uma
vez deparou com o trio no hall – o dono e o Lombriga à frente preso pela
trela, e atrás Perrito, andando normalmente também mas encostado à
parede como se esta fosse uma bengala; acentuava-se a magreza e a expressão era
de resignação. Olharam-se fixamente durante 10’’ e o homem optou por alterar a ida para casa e voltou
para trás apreciando o “passeio dos tristes” e se dúvidas subsistissem
dissiparam-se. Dono e Lombrigas passeavam-se pela frente do
prédio enquanto que Perrito desesperava
hesitando em dar uma fugida ao antigo domínio.
Anastásio percebeu um certo – tolo no meio da ponte – e deslocou-se lentamente para
as traseiras do prédio desafiando o cão a segui-lo o que veio a aconteceu mal este percebera estar fora do alcance visual da
dupla Dono-Lombriga. Foi então que Perrito, de pé, olhando o “amigão” durante
breves segundos desviando o olhar e baixando a cabeça começou a emitir sons
semelhantes a gemidos humanos. A natureza não dotara os homens de competências para entender a fala dos cães nem
outros animais, suas formas de comunicação, mas pelo menos os cães percebiam
alguns humanos e as palavras que lhes dirigiam.
- Que se passa Perrito que
tristeza é essa?
- [auauau…au…auau]
(A minha hora está a chegar amigão)
- Conta lá o que sentes…
- [auuuuu…au…au…auauauauauauuuu]
(Envelheci eles e eles agora têm um mais novo
é tipo rei da selva)
- Mas este ensinou-te a andar de frente no
hall!
- [auauau…auauau…au…au…au]
(Sempre andei de frente sou normal mas gostava
de fazer aquela gracinha…) auhauhauh (para chamar atenção dos meus donos)
- Porque mudaste?
- [auuuuauuuu…auuuu…au…auau]
(Quis provar que fazia igual ao ‘arrastadeira’ e
ter pelo menos a mesma atenção que ele)
- Parece que não resultou…
_[auuuua……au…au…au…auauau…auauau….auauauauauauauauauauauuu...au...auauau
– auauau]
(Pouco importa que pronto morro e até dou
graças ao DogGod «deus dos
cães conhecias?» não mandarem abater-me ou abandonarem por aí…agora até
tenho de fazer as minhas necessidades quando ele precisa…já não tenho direitos)
[aui...aui]
- O teu dono está a chama
- [auauau…uauaua.auuauuauu]
(vou indo e acredita que a vida de cão só é
boa enquanto somos novos...)
Terminada a conversa em que só um falou, interpretando os aus/aus, decidiu
subir até ao apartamento subindo pelas escadas. Sentado na sala pegou no livro
Proezas Impossíveis e tirou alguns apontamentos. Surgiam-lhe um milhão de
interrogações; concluía serem insustentáveis as teorias que só o Homem tem
inteligência e que os afectos não
se encontravam nos comportamentos dos animais, desprovidos de carácter e
personalidade. Passou em revista todos os seus anteriores
cães dos quais não possuía fotografias para além das imagens que deles gravara
na memória fotográfica, mas lembrou-se que conservara duas ou três com o gato ao colo
– sujeitando-as na ponta dos dedos observou-as minuciosamente. Por cansado
deixou-se cair no sofá cama e exclamou: «consegui, consegui falar com o Perrito!»
Não contaria a ninguém o momento que vivera;
gostava que durasse uma eternidade, mas sabia que fazendo-o arriscava-se a que
o internassem. Fechou os olhos e adormeceu.
FIM
28/8/2013