quinta-feira, dezembro 02, 2010

Noc Noc Noc

QUE FALTAS ME FIZESTE

Albertina e Cito


“Quando a sorte bate á porta devemos abri-la, antes de optar por ficar sentado no sofá” Assim escutava das eloquentes palavras do meu avô e depois meu pai.

A minha “mãe”, essa, era tão sábia que deixava a porta aberta até à hora da deita. E se havia algo que sempre me intrigou foi vê-la depois do almoço “gastar” uma hora a pentear os cabelos já fiados de branco, sempre com a “porta aberta”...

Nunca lhe perguntei porque o fazia, o pentear, nem ela me satisfez a curiosidade quando, de soslaio, olhava para a minha cara incrédula de pateta alegre.

Certamente a razão era porque nesse tempo não haver computador, nem TV, a rádio ser uma seca, e ter este sacaninha de neto que lhe tirava anos de vida, pensava eu.

Herdei dela, como se herdasse de parto, esta firmeza de esperar, de pentear o desejo, deixar a porta aberta, esta vontade de dialogar com a própria experiência, num dueto de mudos, em que fruem odores de calma, que os homens ao longo da história foram perturbando.

Hoje começo a levantar a ponta do véu, e a entender a razão do pentear pausado, descobrindo, quando pela primeira vez, escutei durante horas a mesma música, e rasgava no papel os traços finais de uma persiana que estava prestes a fechar.

Perspectivei desse tempo, a certeza que aquela hora significava exactamente o momento único de felicidade, aquele que ninguém rouba, mas que, se quiséssemos podíamos partilhar – nessa altura não partilhava, não tinha a paz suficiente nem o conhecimento idóneo de perceber que uma hora na vida de uma ser humano é irrisório comparado com o tempo de dúvida que nos assaltará pela incerteza de não sabermos se, perante uma escovadela de cabelo, podíamos ter outra hora mais de prazer e de amor ao próprio

Estou seguro, passados mais de quarenta anos, vertidas que foram tantas lágrimas, que acabei por perder vinte e três horas por dia – por não ter gasto uma a olhar para dentro de mim, espreitando através da porta aberta que a minha mãe, ás vezes distraio-me e chamo-lhe avó, deixava aberta, para quem passasse na rua, acaso fosse inteligente entrasse e escutasse por entre um sorriso invisível, uma palavra de verdade.

Vou a caminho do fim, se bem que ainda não dobrei a última curva, olho para trás e já não vejo a poeira do caminho percorrido, nem chagas, a dor desventrada de perder algo que é imaterial. Atiro o olhar para lá do presente, e parece que por trás do desejo, algures, tenho à espera a felicidade que sempre procurei por caminhos sinuosos.

Proponho-me tréguas à tortura que tem sido viver em solidão, e, parecendo finalmente ter ganho de minha mãe a inteligência, deito fora a chave da porta que abri, a quem quiser entrar, e do lado de lá da cortina do meu olhar, escutar, por entre um sorriso invisível, não uma palavra da verdade, mas de sinceridade.

Hoje já dobrado o portão de acesso à velhice, mirando trás os trilhos que calcorreei, as mulheres que amei, não sei se alguma vez vi nelas o mar de calmaria onde me banhava a cada dia, ou se acaso olhei profundamente dentro do meu olhar e vi reflectido no meu sorriso, este rosto que me apontou a vida.

Inácio,

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