Suspensão Temporária
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Por motivos de força maior os postes serão suspensos até ao dia 30 de Abril.
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Por motivos de força maior os postes serão suspensos até ao dia 30 de Abril.
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http://www.youtube.com/watch?v=sjmsyggXJw8&feature=related
O Ministro e o Mendigo |
O ENCONTRO
Trim trim, ”clic”, um levantar de auscultador e, do outro lado, uma voz fez-se ouvir, entre um suspiro de enfado e um arquear de sobrolho.
-Estou, é Virgolina Cortes secretária da Dr.ª Cremilda Séria, assistente do senhor Ministro dos Celeiros.
- Sim, fala a Miseravita, empregada do município de Vilar dos Morcegos, é para confirmar a vinda do senhor Ministro para “terça-feira
- Sim querida a visita está agendada, e a comitiva sai da capital por volta das 10:40, e contem com 8 pessoas para o almoço
- Sim senhora, bom dia doutora.
Dona Miseravita não demorou a espalhar a nova pela vila, um lugarejo que aspirava a cidade, mesmo não tendo Hospital Câmara ou Secundária, tinha um lindo Cemitério a Igreja Matriz e muitos Celeiros espalhados pelas redondezas, silos que serviam para armazenar os produtos com destino á capital.
O Presidente da vila, Francisco Alento, homem de algumas posses, depois de ter informado o “cura” homem que tinha largos conhecimentos em tratamento da alma e de doenças correntes, não demorou a tomar a decisão e mandar preparar o celeiro municipal mais antigo da vilória para receber sua excelência o senhor Ministro.
O sítio era um espaço aberto, com a entrada directa pela rua principal da vila o que facilitaria o “ajuntamento” da população para receber com grinaldas dignas de Nossa Senhora da Purificação. Todos estavam antecipadamente convidados a comparecer, mas só alguns teriam direito a senha de almoço e fazer perguntas, que sua excelência o senhor ministro não podia gastar tempo com perguntas tontas.
E a terça-feira chegou, com um sol radiante como se pedira à meteorologia, não fosse o senhor ministro molhar o fatinho, antes mesmo de meter água com algum discurso menos cuidado.
Os “mercedões”, dois, para seis pessoas, incluindo a estenógrafa da secretária da Drª Cremilda Séria, rolaram pelo asfalto bem cuidado, onde se notava claramente a falta de movimento por aquelas bandas, tendo em conta que o acesso se fazia quase sempre por lado de Espanha – do lado português na verdade também pouco justificava uma deslocação ao ermo, fora as obrigações instituídas.
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A sala enchia-se desde as dez horas, apesar que o ilustre visitante só chegar por volta das 12:30, com a conversa a dar-se de imediato e, em pouco mais de 45 minutos estaria tudo terminado e a tempo de beber um verdinho fresco e comer uns petiscos regionais antes do prato forte – mas o povinho não queria ficar para o fim, contrariando o que os detractores nacionais andavam sempre a dizer que se deixava tudo para o último dia.
Não se podia contudo comparar a curiosidade em relação ao ministro com a chatice de pagar os impostos no último dia, sempre na expectativa que, por engano, o governo decretasse a abolição de uma taxa sobre quem trabalha.
Galopando estrada fora, ei-los chegados, e que bem parecidos eram, que bem aperaltados vinham.
Parados os carros dirigiram-se para o portão largo do Celeiro, esvaziado propositadamente para a cerimónia; Vilar de Morcegos tinha um bom salão paroquial, mas o presidente da vila pretendia que assistisse o maior número de votantes, aproveitando para reforçar a sua posição em futuras eleições face ao concorrente mais directo, que não fazia sombra mas às vezes fazia perder tempo.
A sala estava composta; antes de entrar, no largo limpo mas onde se podia ver alguma erva daninha escondida, um menino maltrapilho brincava com perdas; ao passar o Ministro perguntou o que ele estava ali a fazer tão mal vestido, e ele respondeu que andava a pedir – não gostou, e questionou o responsável na vila as razões daquele degradante espectáculo que lhe ofereciam à chegada, ao que o inquirido respondeu não conhecer o miúdo, e que certamente devia ser filho de alguém que teria chegado a Vilar por engano ou curiosidade em ver o que passava.
Entraram todos e o circo ficou definitivamente montado – palmas à entrada para sua excelência por parte dos habitantes locais. O séquito governativo ficou na primeira fila, onde se sentaram também alguns dos acompanhantes que se deslocaram propositadamente para ouvir mais uma brilhante alocução política.
À entrada, o presidente da vila mandara colocar dois guardas à civil, contratados a uma empresa moderna e que começara a operar na zona há cerca de três ou quatro meses – no seu legítimo entender era preferível, mesmo sendo mais caro, que recorrer à polícia da capital de zona, porque a defesa da ordem estava acima de gastos questionáveis.
Um mendigo, fez tensão de entrar no recinto, mas os seguranças, ciosos das suas competências não deixaram provocando forte ladrar do Serra de Aires que acompanhava o mendigo, preso por uma corda envelhecida.
Percebendo que a Comunicação Social podia interceder em seu favor, fez sinal para que deixassem passar e sentar-se nos bancos do fundo da nave, o que mereceu por parte da população mais uma ovação. O mendigo fez então uma carícia ao cão que se aninhou aos seus pés.
Ao som da sineta emprestada pelo padre da vila, iniciou-se a cerimónia com as apresentações da praxe; Um discurso preparado com uma semana de antecedência, e corrigido pela professora primária da vila, para que não houvessem gralhas, nem erros de interpretação por falta das vírgulas e pontuação.
Após os aplausos entusiasmantes dos seguidores do presidente amigo, este passou a palavra ao convidado, ilustre ministro, Dr. João Avelem Honesto
Corria satisfatoriamente a palestra, fazendo o ministro um conjunto de elogios ao labor do presidente da vila, personagem do seu partido, e que era um orgulho não só para as bases partidárias mas também para a cúpula, e que significava que a continuidade da extraordinária obra que o governo se envolvia estava assaz bem sustentada no interior.
- Vamos fazer isto, apoiar aquilo, rasgar grandes auto-estradas para ligar os grandes centros citadinos, e mais dois ou três aeroportos.
Aplausos mais aplausos, mesmo que a vila com nada destas obras beneficiaria, mas como era para o bem nacional e para desenvolvimento futuro das gerações vindouras, Vilar de Morcegos associar-se-ia incondicionalmente a tudo o que servisse para o engrandecimento da sua pátria.
- Tenho fome!
O celeiro gelou. Nem uma mosca se atrevia a levantar voo. Como era possível alguém, e ainda por cima com voz esganiçada a arrepiar os pelos dos convidados ter entrado sem que se desse conta.
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E todos rodaram a cabeça para trás, e repararam no maltrapilho que estava sentado ao lado do mendigo, que serenamente colocara a mão em cima da cabeça do menino
Os caciques da vila não podiam acreditar e a sua expressão de pavor por semelhante atrevimento fez com que o Presidente da vila, Francisco Alento ficasse quase sem pingo de sangue.
Colérico ordena aos seguranças que pusessem o fedelho na rua, porque todos estavam avisados que aquela sessão era para adultos, mas o ministro, antevendo as páginas nos jornais e também porque reconhecera o mendigo, fez sinal para que ninguém se mexesse.
Olhou para os seus acompanhantes e para os presentes e perguntou se alguém trouxera algo para comer, uma sandes ou mesmo uma peça de fruta – infelizmente para o ministro, não pode ver o seu desejo satisfeito e lamentou-o dirigindo-se para o garoto dizendo-lhe que depois comeria.
O Mendigo, mirava, por detrás do seu olhar embaciado, os presentes. Em cada um via uma cana de pesca mas não via peixe nos alforges. Ele conhecia o que muitos políticos diziam sobre a mendicidade e o quanto eram apologistas de, em vez de oferecer o peixe devia-se ensinar o povo a pescar. Sabia e concordava intimamente.
Não obstante estar envolto nestes pensamentos escutou perfeitamente o senhor Alento dizer, o que ele já sabia de longa data.
- Devemos ensinar a pescar, dar cultura, preparar o povo para os desafios do futuro, em vez de subsidiar a malandragem e a pedinchice
Plácido, o mendigo, levantara-se ao escutar estas últimas palavras e começara a dirigir-se para a saída. De costas continuava a ver as canas, os lagos os rios os mares, mas acima de tudo a estupidez de muitos homens a quem ofereciam lugares em troca de cruzinhas em boletins de voto. No seu caminhar lento, não levava o cão amarrado, mas segurava pela mão o pedinte; na cintura, a corda envelhecida ganhara outra tonalidade.
Parou, largou a criança que saiu a correr por entre os seguranças, quando o mesmo lhe perguntou:
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- O miúdo é teu filho?
Plácido não gostou do tom nem do termo; era um mendigo moderno, democrático cumpridor das suas obrigações de pedinte; tinha cartão de cidadão, sabia ler e escrever, usar garfo e faca, e também sabia para que servia a escova de dentes.
Não nascera mendigo, e respondeu como nascera
- Não, é filho do Senhor.
Vendo a insolência do anfitrião e na postura dos “capangas da porta” João Avelem Honesto, intromete-se questionando Plácido
- Já comeu senhor?
O mendigo, de pé, vira-se para o púlpito onde estava o Ministro – para além do olhar embaciado pela comoção, podia ver-se alegria do saber em Plácido.
Era um homem maduro, culto; percorrera os trilhos do cinismo, aprendera com o sofrimento que a fome era azul, de azul celeste, a cada prato de sopa.
Gostara daquele ministro, entendia que ele podia ser um homem íntegro se a matilha deixasse, mas gravaria nos braços, pernas, e até no pescoço as marcas das dentadas – e quis oferecer-lhe sapiência que nunca teria, por muitas conferências palestras cursos livros bibliotecas ou almanaques de alquimia que tivesse. Fixou o olhar, deixou que ele se cruzasse com João Honesto, o Ministro, e respondeu...
- Já senhor doutor, há muito tempo...
Fez uma pausa propositadamente e o sussurro baixou o volume; todos perceberam que a resposta estava incompleta, ao mesmo tempo que o mendigo continuava a olhar a sala, a ver as canas de pesca mas não enxergava a linha nem o pescado.
- Senhor, aprendi a pescar há muitos anos, era então pouco mais velho que o filho do Senhor.
Lentamente dirigiu-se para a saída, onde os seguranças barravam a passagem – o ministro fez sinal para que se afastassem.
Ele, Honesto de seu nome, era um homem amargurado por não ter conseguido cumprir a sua missão – não tinha filhos, a sua mulher ficara “impossibilitada” quando teve de fazer um aborto clínico, um erro nunca compreendido.
Sentia que um dia teria de deixar aquele cargo ou a entrada em guerra com os seus pares era inevitável – não convivia com a indecência, e gostava de tomar banho com água corrente.
De costas, o mendigo “via” que o ministro ainda não era um homem perdido no matagal dos chacais atiçados pelo egoísmo formado por um colectivo artificial. Sorriu sem que ninguém reparasse, meteu as mãos nas algibeiras coçadas, puxou levemente as calças para cima.
Já quase todos se encontravam de costas para o “indigente” – apenas o Ministro reparou, que o Mendigo calçava “sandálias de pescador”.
De imediato pegou no bloco de notas, e ao mesmo tempo que rabiscava com a caneta que lhe ofereceram os pais quando terminara o curso, deixou estalar uma triste gargalhada, exclamando:
- Meu Deus, deixámos secar os lagos!
A RENÚNCIA
João Avelem Honesto sentia-se desmotivado confuso desde o episódio de Vilar de Morcego – não conseguia entender nem justificar o desaparecimento do cão do mendigo, que veio a saber chamar-se Plácido.
Haver crianças com fome e tanto desperdício no bar da “assembleia governativa” incomodava-o – e fez com que a viagem de regresso fosse penosa, o almoço a seguir à palestra um sabor amargo, o vinho a saber a vinagre, e os doces com um travo de casca de laranja azeda.
A viatura rolava, mas ele via que a estrada, no sentido oposto, estava pejada de buracos, que antes não reparara, e os campos que circundavam o caminho já não apresentavam o verde esperança mas sim o castanho abandonado.
Antevia reuniões duras quer com a cúpula do partido quer com os restantes ministros, e talvez alguns aproveitassem para o desacreditar e lançarem a fateixa ao cargo que a ele, por mérito fora atribuído pelo presidente do partido. Alguns diferendos já tinham surgido e só a pronta intervenção do chefe pôs ordem e acalmia nas hienas – durante a viagem arquitectou um projecto para implementar, e ia apresentá-lo em sede própria.
Ao chegar a casa, nesse fim de tarde, reparou que a rua se apresentava particularmente despida de vida, e o rafeiro do vizinho não ladrava com a mulher, deixando-o admirado, mas comentou entre dentes que, para ela, se o sarnoso desaparecesse era um alívio ao coração e à algibeira pois o dito cujo não passava de um prostituto desonesto
E a proposta idealizada tomou corpo. Três semanas depois estava concluída e pronta para ser discutida – tinha um carácter social, profundamente humana e modernamente revolucionária em que explicava contundentemente as vantagens da eliminação dos focos de pobreza no pais e a contribuição que os pobres poderiam dar na economia futura se fossem criados mecanismos de recuperação e sustentabilidade financeira destes.
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Queria no fundo que eles pescassem com as canas que lhes dessem mas nos mares onde abundasse o peixe e não nos cemitérios de depósito de lixo urbano.
Custava menos ao País criar essa plataforma de desenvolvimento que, no futuro, ter de pagar a um exército estrangeiro para impedir uma revolução civil.
O hemiciclo estava completo, pois tratava-se de decidir a futuro dos pobres, outrora crianças hoje a caminho da velhice, mas que pelo caminhar da vida tinham gerado novos pobres. A galeria reservada aos populares, sempre a abarrotar nestes momentos, estava já preparada e em silêncio, permitindo ao presidente da Assembleia dar início ao veredicto da contagem dos votos.
À medida que se fazia conhecer o resultado, João retira da carteira alguns cartões, e pede à funcionária para que lhe facultasse um envelope. Depois coloca dentro a carta que durante a espera redigira – e o resultado oficial fez-se conhecido; a sua proposta tinha sido reprovada por esmagadora maioria, dir-se-ia que por unanimidade.
O Ministro sentiu, no preciso momento que todo o seu trabalho fora em vão, um aperto no peito, mas ao mesmo tempo uma paz desconhecida até então. Perdera, mas ganhara a oportunidade de, poder dizer, basta – pediu a palavra à Mesa, que lhe foi concedida, como se uma benesse aos derrotados se tratasse.
O silêncio era sepulcral, e os presentes estavam mudamente assustados; o público na galeria deixara explodir um mutismo perigoso – um grito sem som, mas de alerta aos governantes. O discurso poderia ser inflamado, destruidor, acusatório; o ministro aproveitaria a oportunidade para lançar o repto da rebelião?
João Avelem Honesto percorreu todo o espaço com o olhar e parou-o numa cara que lhe parecia familiar; era a cópia fotográfica de Plácido e deixou escapar:
- Não pode ser ele, não o deixariam entrar
Levantou-se, e dirigiu-se ao hemiciclo
- Senhor Presidente, senhores deputados. Solenemente hoje, perante o plenário, declaro por minha honra que apresento a minha renuncia ao cargo de Ministro dos Celeiros e a minha indisponibilidade para dar continuidade a políticas de encerramento de celeiros e de destruição de factores de produção de bens essenciais à subsistência do meu povo.
Saudou com aperto de mão o presidente do governo, despedindo-se com aceno de cabeça dirigido a todos, e mostrou, já de costas, como se caminha com altivez pelas carpetes do poder.
Do alto, o povo que assistira em directo à renúncia, levantou-se, e sem qualquer gesto prestou-lhe homenagem – sem que João conseguisse descortinar o homem que lhe fizera lembrar o mendigo de Vilar de Morcegos.
Ao passar pela segurança fraquejou levemente o que levou um dos guardas a perguntar se estava a sentir-se bem – respondeu que sim, um pouco dorido mas de alma lavada, sorrindo-lhe.
Fazia-se sentir uma brisa quente; tirou o casaco e decidiu ir a pé até à estação do metropolitano. Regressava a casa exactamente como viera para a política.
Como era bom o seu país, como eram cálidos os usos e como era dócil a sua gente. Apanhou o metro e sentiu-se aliviado por ninguém o ter reconhecido.
A imprensa tentara entrevistá-lo mas ele repudiara o mediatismo oportunista da venda de mais uns pontos de audiência competitiva. Queria ser simplesmente o cidadão – tinha formação como homem podia governar a vida fazendo jus ao seu nome.
Ao chegar a casa, pelo passeio fronteiro ao pequeno jardim, um cão grande aproximou-se dele abanando o rabo – devia andar perdido pensou, ao ver a corda presa à coleira. Reparou ser uma coleira cara, em cabedal de primeira qualidade, e com uma inscrição começada por “PN”, que não decifrou nem fizera qualquer sentido – fez uma festa na cabeça do animal, que abanando a cauda atravessou a rua a correr em direcção a um homem bem vestido, dir-se-ia nobremente trajado, sentado no pequeno banco de madeira que o município mandara colocar, a pedido do ex-ministro, e que servia para os idosos se juntarem em amena cavaqueira nas tardes de primavera e verão.
O desconhecido agarrou a corda, acenou a João, levantou-se e começou a caminhar rua abaixo; o ex ministro virou-se de costas e não reparou que junto ao banco, caída no chão, estava uma pequena cana de pesca, um saco com peixe ainda vivo, e pães sem sal.
O ex ministro abriu o portão do jardim; reparou nas flores, na cor das pedras que delimitavam o canteiro, na maçaneta da porta de madeira com ferragens de ferro enegrecido, e, ao meter a chave à porta esta abriu-se mesmo sem que lhe tivesse tocado.
Dentro, Isabel a sua mulher esperava-o com um beijo. Estava feliz e transportou-o pelo braço até à sala, sentando-o no sofá.
- Sinto que não aprovaram a proposta!
A esposa não esperou pela resposta; dirigiu-se à cozinha dizendo que ia preparar um refresco para comemorarem.
- Comemorar a minha derrota?
Em cima da mesa que ladeava o sofá João reparou num papel dobrado. Eram análises que a mulher fizera na semana anterior. Abriu, e anexo ao resultado, uma nota – “grávida de 5 semanas”, assinado Dr Plácido Natividade.
No preciso momento que o papel escorregava por entre os dedos trémulos, pareceu-lhe ouvir uma gargalhada ecoando pela casa.
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BOM DOMINGO | |
ENTRA EN
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O silencio da timidez.
[O nervosismo dormira deitado ao lado de Cito; iniciava-se o primeiro dia de aulas do 2º período e a oportunidade de voltar a vê-la fervilhava-lhe na mona. A irritação era tão contagiosa que levou a mãe a enviar um aviso sem dó nem remetente. - Ou te acalmas ou só começas o dia de aulas amanhã, e hoje vais de plantão para o escritório do teu pai. - E marcam-me faltas! -Justifico com um atestado de “parvoíce matinal” Acalmou-se, ou disfarçou como pode. Não perderia a oportunidade de a ver – andava perdidinho de amores por uma menina de 10 anos, loira, naturalmente loira, e, como ele suspirava e dizia que era “linda como anjos”; sabendo lá um puto de onze anos de que cor paladar ou formato eram os anjos! | ||
Mas ele perdia-se, era o contraponto dela; moreno que nem um tição, expansivo nas brincadeiras, sonhador, e de famílias menos “tias” e coisa que o valha, ou daquelas que têm dois nomes e três apelidos – e na verdade nem a “conhecia”... A pressa a apertar, o mata-bicho a deslizar, as sapatilhas a deslizar, e os estudos a deslizar entre negativas, mas lá que ela o perdia, não havia dúvidas; até já nem os jogos de futebol o entusiasmavam] | ||
Pedro interrompe pressentindo uma seca a caminho... - Deixa-te de filosofias que sou de informática, Expliquei-lhe que tempos atrás encontrara-me com os amigos para derrotar uma “almoçarada” com baile à mistura, tipo reencontro de jarretas pançudos e pencudos – pessoas que carregavam o passado, não como um fardo, mas como parte das suas vidas, nos últimos quarenta anos. Curiosamente o “pré-engenheiro” quis saber o resto da história. [- Nesse almoço, num grupinho que se formara à frente da nossa mesa, vi uma loira, que nada me dizia e nada dizia – estava em companhia de outras pessoas, que eu conhecia e perguntei a Maofy quem era. Respondeu-me tratar-se de “Mg’á”. Não reconheceria mesmo sabendo dos contos de “príncipes e princesas” que Cito me contava, e em que ela era sempre a princesinha e as outras borralheiras mesmo as que eram gatas. Cruzámos casualmente o olhar e não senti nada, nenhum sinal dos tempos remotos se me apresentou, e nem a beleza era coisa que já não tivesse visto; não a associara à tal “Mg’á” dos tempos de amores solapados do meu amigo Cito. Como nunca a chegara a “conhecer” não passava de uma estranha] Mais uma interrupção e mais um “adiante pá”; como já não tinha pachorra para o ouvir mais, dei-lhe a entender que ele é que tinha perguntado e por isso “fermé la bouche” até ao fim... e lá continuei. [- Estávamos de saída, o ambiente esfriara, a vontade de continuar a sacrificar os olhos era pouca. Maofy e eu iniciámos a subida da escadaria que levava ao primeiro patamar; tentámos daí descortinar o resto dos amigos que estavam connosco, e ao mesmo tempo saborear uma música que entretanto se deixava abraçar. Rodei a cabeça sobre a direita, procurava a Dorné, e, o meu olhar encontrou o da tal “Mg’á”. Não era casual – estava virada para a escadaria, e a sua postura indicava que me observava há alguns segundos e não fez menção de disfarçar. Fiz um imperceptível aceno de cabeça, ela correspondeu de igual modo. Rodei depois para o lado contrário, segredei à minha companheira “vou subindo”, e já de costas para a sala, permiti que aflorasse no rosto um trejeito de satisfação. Não sei como era em criança, mas Cito e eu éramos nos tempos de meninice muito parecidos; tomara-me por ele, 45 anos depois. Ao grupo, nada disse sobre este episódio – também desde esse dia não a tornei a ver...] Terminara o relambório, olhei distraidamente para uma loira que passava, e silenciei-me, até Pedro rematar, numa expressão típica dos “men” pós emancipação... - Já está? Muito bom, sim senhor! Um beijo, tchau” quetánahora”... | ||
Saiu deixando-me entregue aos pensamentos e resmungando por causa de uma feiosa que entrara no autocarro na minha vez, enxotando a velhice. Evidente que segui viagem sem a molestar, pensando que não devia desculpar o meu amigo Cito por nunca ter cumprimentado “o anjinho”, nem com num aceno, e ter vivido um amor pateta, oferendo-lhe silêncios de despedida em cada fim de aulas, sem saber se ela alguma vez desejou conhecê-lo – não o desculparei, e também nada lhe direi. Se vir por aí este gajo não lhe diga nada... não merece... |
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Que se lixe o que me chama
Nunca me importei, nunca senti mágoa pela cor com que me pintaram a pele e a alma, nem me arrependi dos sentimentos que ofereci. . Deambulei pela infância curtindo as palmadas de primas, arrepiei-me enrolado a elas nas relampejantes noites de trovoada, sentindo o seu coração bater e o seu respiro acariciar-me a rebeldia – e em cada noite, em cada tarde, em cada correria gravei a minha própria revolução. | |
. Fui em criança o exemplo acabado da revolta sem sentido, o “gitano” cor de chocolate, o bombom nunca derretido. Atirei-me de pára-quedas agarrado a guarda-sóis – rebolei pelas escadas das feridas, bramindo laços de cowboys pistolas, arcos de índios, espadas de El Cid o Campeador, selvagem em cada atitude de rebeldia, nas lutas e nos choros tropeçando caindo mas levantando-me a cada rasteira. . Saltei para a infância, entre gritos e momentos de agonia de dor e de amores nunca conseguidos. Fui tantas vezes um viveiro de indecisões enchendo o meu inconsciente de temores, de mantos brancos salpicados de estrelas douradas pelos sorrisos de quem amei sem ser amado. E corri pelos mesmos vales de outrora, com o mesmo sentido, sem olhar a direcção em que ficava o precipício continuando a decidir entre o que queriam de mim e o que podia dar; e sempre dei o que pude e nunca o que de mim exigiram. . De salto em salto, entrando por revoluções interiores, contendo a vontade que me impelia para a louca dança de uma vida vadia, cresci apontando um caminho que nunca soube a que paraíso me levaria. . Olho para lá da alma contemplo o meu próprio éden esperando que não tenham bombardeado todos os paraísos e que tenham deixado algum para os meninos como eu; não me importo de o partilhar “consigo”, mesmo que me chame cigano... . |
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