domingo, março 28, 2010

Pedaços de minh'alma

Mabubas, 1958


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Funeral do Gordalheiro

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Em passo seguro, denotando perfeito conhecimento da área, um homem jovem, moreno, farta cabeleira e bigode rosqueiro pisava a relva crescida, quase capim, do largo que outrora servira de palco a gloriosos jogos de futebol entre candengues amigos.

A sua memória recuou no tempo, distante, em que a inocência era a única maldade que tinham no corpo.

E pareceu-lhe escutar quase em estéreo....

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Mãaaaaaeeeeeeeiiiiiiii!!!

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Na cozinha Albertina olhou para Madalena com o sobrolho franzido e deixou escapar:

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- O “farrusquinho” acordou, e trás o diabo no corpo.

- “Aspatroa queresquitomis conta dosminino?”

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A avó, sorriu, pois sabia que Madalena, se o petiz saísse do trilho, sacava uma palmada no rabo do puto e o choro acabava enterrado no estômago tendo como carpideiras uma data de soluços fingidos.

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- É melhor Madalena, assim ele inicia o dia a toque de caixa!

- Já vai, MininoCito, já vó

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Ao escutar a voz “adamastora” de Madalena, o puto achou por bem não fazer ondas naquela parte do corno de África para não estragar o dia; estava de férias, ia encontrar-se com os amigos para um tremuno de 4x4 na relva pisada quase careca do jardim e o terror não pedia licença a Deus para lhe engomar os calções contra o rabo.

Depois de comer, , calçou os Quedes de Sanjo, botou água no cantil, e ao pescoço pendurou uma toalha. Parecia o Mário Coluna.

No rádio da cozinha tocava uma charanga sem jeito, daquelas que tirava a calma à preguiça, quando Cito, olhando o relógio que marcava 10:15, dedica às duas mulheres um “tchau que zarpo”, mas voltou a trás para perguntar o que era o almoço.

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- Línguasdipreguntadó, rematou Madalena.

- Bolas que minh’ama tá chifruda...

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E Cito basou correndo em direcção ao Largo; eram 3 minutos em passo de aquecimento.

Estava uma manhã de sol, um pouco fresca, a temperatura rondaria os 19/20 graus, a humidade, um pouco maior para aí uns 70%, mas a vontade era muito maior.

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No largo juntar-se-iam Vaitalha, Tormenta, Basuca, Tião, Miliguero, Xundito, Saffado, Crepsinho, ele, e Gordalheiro, normalmente só jogava porque era dono da bola...e só à baliza para não atrapalhar o esférico.

Entre palmadas e risadas, contos de encantar, “combinanços” para uma viagem da parte de tarde ao morro Miramar, esperavam ansiosos por Gordalheiro que não chegara. Naquelas cabeças pequeninas, estranhava-se a demora do amiguinho que era sempre dos primeiros a chegar.

Tião fala que no dia anterior um camião tinha atropelado um menino mas não conseguira saber quem era. A notícia começou a martelar a cabeça do grupo. “E se tivesse sido o Gordalheiro?”

O silêncio tomou conta das bocas, quando na embocadura do largo, deram conta que passava um estranho cortejo, com carro preto em marcha de enterro e um montão de pessoas a acompanhar entre lágrimas e abraços de conforto.

Os olhos dos miúdos começaram a lavar a saída para que as lágrimas pudessem brotar sem arranhar a menina dos olhos. Não queriam acreditar que Gordalheiro, um gajo mais ou menos porreiro, tivesse batido a bota!

Sem bola e com a fome a começar a roer por dentro, mais pelo medo do que por vazio no estômago, decidiram sentarem-se na berma da caixa de areia que ficava no meio do largo, onde costumavam fazer os concursos de “saltos para areia” a conjecturar.

Vaitalha rasga o silêncio com um desabafo:

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- O Gordalheiro ao menos podia ter pedido a alguém que trouxesse a bola. Agora vamos ter de arranjar uma!

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Basuca reforça:

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- O gajo é um forreta, agarrado, bolas. Vamos embora que hoje já não quero jogar – morre e leva a boa com ele...aca!

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Estavam entre lamentações e acusações quando, vindo do lado contrário da entrada do largo, escutam uma bola a bater no chão, e um...

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- Tavam à minh’aspera! Já escolheram as equipas?

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Viraram-se de repente, e viram Gordalheiro todo satisfeito; trazia um equipamento novo e ostentava, sorridente, umas joelheiras novas e também “cotoveleiras de Guarda-redes”.

Entre sorrisos, palmadas, e ares de alívio os amiguinhos desfizeram-se em palavras de amizade, até que Gordalheiro pergunta:

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- Já escolheram a equipa onde vou jogar?

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Saffado, que fazia jus ao nome, irritado com a demora da “bola” dá uma cotovelada a Cito e dando a entender que estavam a decidir sobre quem ficava com o defunto a keeper; depois de cochicharem algo que ninguém percebeu.

Cito usa da sua posição de capitão de equipa virando-se para Gordalheiro.

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- Já, e decidimos e como somos teus amigos hoje jogas no lugar de avançado centro!

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Caía a noite, eram quase seis e meia e o homem jovem, moreno, começa a dirigir-se para a saída do largo. Levava a saudade dos tempos de meninice estampada no rosto, e a imagem dos amigos no pensamento.

Ao virar esquina, em direcção ao mar, olhou para duas crianças que brincavam ao jogo das pedrinhas – estavam mal vestidas, tinham nos pés sandálias gastas, e olhar, percebia-se que há muito deixara de brilhar.

Nada lhe pediram nada; ao passar por elas lembrou-se de novo do funeral do Gordalheiro deixando escapar uma gargalhada - éramos mesmo crianças...que saudades.

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