Pedaços da minh’alma
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Mam’Albertina “You Don't Bring Me Flowers anymore
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Os medos de Buco
A carrinha Renault Envergava calças azuis escuras e uma camisa branca que se confundia com o branco da carrinha, enquanto a face se confundia com o preto do desenho da palanca pintada na porta, um alvo perfeito. | |
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Cito trazia o coração apertado, e a mente confusa; não sabia se dirigir-se a casa para um banho reconfortante e um descanso merecido, mesmo que se enclausurasse num disco de “Mamas & Papas” ou porque não, escutar The doc of the bay de Otis Redding, antes de adormecer. Ou ao invés, virar à esquerda, descer ao inferno, e ir até ao Flamingo curtir um Vodka com laranja, ou se pegasse uma amiga do forró, um Cocktail Alexander. A escolha parecia difícil, mas o silvar das balas longínquas que ainda se podia escutar fê-lo decidir um mergulho nos líquidos salvadores da “disco” – depois era dar um salto até ao Farol, sacar um mergulho e secar-se com a brisa marítima. Todas as noites, levava a sua equipa às respectivas casas, e Simão era sempre o último. Tinha acabado de o deixar em casa, e vinha agastado; doía-lhe a alma e apoderava-se dele a mágoa. Simão era homem negro, estatura idêntica à de Cito, rondaria os trinta e sete/oito anos, e era um dos carregadores da equipa. Atribuiu-lhe o lugar de “assessor de oficial de carga internacional”, cargo que não existia, mas para isso era coisa que pouco importava. Sentia-se honrado com a distinção e os outros membros da equipa passaram a desempenhar na perfeição o seu papel; Subchefe Simão mandava! Carregaram as paletes do 747, num voo que pareceu estranho, e Cito resolveu ir até ao fundo da pista, para assistir de cátedra o que poderia ter acontecido, mas que por sorte ou perícia do comandante nada se passaria. Por volta das onze e meia da noite, pedira a Simão que o acompanhasse, e como ainda teriam de desocupar mais umas paletes, dera ao restante do pessoal folga para comer e descansar. Olhavam o Jumbo escutando o roncar, à medida que se aproximava do local onde estavam, debruçados sobre o morro que dava para a praia; o barulho impedia de escutar as balas que, acompanhando a luz das estrelas, ofereciam, como quase todas as noites, sinfonias fúnebres. Quando o “passarão” passou por eles, flaps a fundo, trem a recolher, e nariz apontado ao firmamento, Cito cruzou o olhar com o rosto de Simão, e pressentiu no seu perfil, um negro macerado de tristeza. - Simão que tens? - Mais um “Cito-chefe”, mais um que levantou e quatrocentos que não regressam...mais. Cito nada disse; precisava que aquele homem desabafasse, que lavasse a alma, que dissesse que sentimento tinha em relação aos que partiam. Ele que nunca tivera um gesto de contrariedade ao carregar as coisas dos outros, dos que partiam, de alguns que viviam no seu bairro, dos meninos que brincavam com os seus filhos; ele que sabia quantas e que “coisas” continham as paletes...coisas que nunca tivera, coisas que nem sabia a serventia. Cito perguntou-lhe se tinha medo, se tinha receio das balas que se ouviam por cima do telhado de zinco do hangar daquele aeroporto imenso, das balas perdidas, ou da guerra que vinha a caminho! Simão fraquejou pela 1ª vez ao longo de 4 meses de mano a mano diário; mostrou que dentro do peito o coração tinha o mesmo medo que tiveram tantos pais que, voo após voo, levavam os seus haveres e os seus filhos, rumo a um país que muitos nem conheciam. Então colocou-lhe a mão no ombro em sinal de “hora de retirar”. - Simão estão a partir, estão a esvaziar a nossa terra, mas eles voltam. - Não voltam chefe, não voltam, e os que vierem não serão s mesmos... -Voltam, sim! Eles têm medo da guerra, de uma bala perdida do que poderá acontecer aos filhos e às mulheres, mas voltam quando sentirem a paz. .
Simão virou-se ligeiramente em direcção ao ponto luminoso que se afastava no céu, e, de costas viradas para Cito, murmurou num tom que deu perfeitamente para entender o que dissera, mas que só anos mais tarde este compreenderia. - As balas matam, mas não a fome,,, |
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