ÚLTIMA CHAMADA
(Ainda sem correcção)
Última chamada...voo 651 com destino a Lx... e na voz da funcionária do check in que atendia os últimos e desesperados passageiros era indecifrável qualquer conteúdo emocional por eventual desatenção ao drama que se vivia na própria sala de embarque do aeroporto CL, e o relógio apontava exactamente 23.30 quando e em simultâneo à chamada, no bar, um dos funcionários da companhia que operara o avião olhava fixamente a chávena de café e o ½ pacote de açúcar colocado no pires. Do lado de dentro do balcão o empregado de serviço à cafetaria, alheado de tudo o que se passava na sala de embarque, concentrado em alinhar as chávenas em cima da máquina de café para as manter aquecidas, colocadas uma a uma, ao voltar-se para o lado de fora do balcão e vendo que o oficial, pela farda que envergava, e continuando imóvel sem tocar no café, sentiu-se incapaz de deixar de perguntar como tinha corrido o turno.
- Mais ou menos igual ao de ontem provável como será o de amanhã enfim vamos cantando e rindo
- Vai ser mau até acabar isto tudo por mim não vai demorar a que deite esta terra e os sonhos para trás das costas e abale
- É natural de onde
- Nasci em Setúbal pelo menos assim o confirma a certidão de nascimento e o amigo
- Nasci cá amanhã continuamos a conversa se…
Entre os dois dedos de conversa informal tomar café pagamento da despesa despedir e desandar já o relógio do bar apontava para as 00:10; vinte minutos depois o comandante do avião Boeing 747 iniciaria os procedimentos para a descolagem, assim a Torre de Controlo desse a necessária autorização, havendo tempo de sobra para o jove4m que acabara de sair para a zona de carga pegar na carrinha da companhia e rolar como costumava fazer em voos àquela hora, dar um salto até ao final da pista de aterragem, curiosamente também a mesma para as descolagens, e nessa noite, sem saber porquê, a vontade ainda era maior. Já com a chave metida na ignição, deixa cair a cabeça sobre o volante, fecha os olhos, suspira e diz para os seus botões – Chiça há 4 noites que não vou à cama a velha um dia destes proíbe-me de vir trabalhar e com razão só me vê antes e depois do banho e querer saber se a farda está passada a ferro – mas o roncar das turbinas trouxe-o à realidade.
Pelo alcatrão à sua frente, bem conservado a desandar para um raiado de vermelho sangue com sombras estrelares que brilhando num céu límpido pareciam querer tapar a tristeza que se instalara naquela zona da terra, e também por não poderem mudar o futuro ao planeta que iluminavam. Mas dois quilómetros foram suficientes para travar a carrinha, e debruçado, já do alto duma espécie de falésia que à sua frente parecia desafiar a um mergulho sem tempo de ida sem volta, sacudindo a cabeça paulatinamente e recrimina-se pela loucura que momentaneamente parecia ter-se apoderado de si. Para lá da estrada que separava o morro e a baía larga com o horizonte a perder-se de vista na escuridão, Jacobino Valente desenha mentalmente uma nova cidade de um país recentemente surgido da fecunda imaginação mas totalmente povoada pela misciginação imperada ao longo de décadas de ocupação singular, mas sentindo-se na realidade traído relativamente aos sonhos do tempo de criança, mais tarde de jovem adolescente, por entender que um país devia constituir-se de pessoas que jamais poriam os seus interesses pessoais acima do bem-estar colectivo.
Enquanto mergulhava no pensamento em vãs filosofias políticas, fossem vermelhas rosas ou cinza ditatorial o Boeing fazendo-se à pista acabava de fazer numa manobra prodigiosa e perigosa, quase rasando a superfície do mar, algo que não aconteceu porque os pilotos não eram aprendizes, antes profissionais de excepcional perícia e sabedoria na arte de pilotagem. Dois a três minutos após deixar o solo o avião ultrapassava a fase final da descolagem alcançando a altitude ideal para voos em velocidade cruzeiro ligar o piloto automático, algo que levou JV a soltar um suspiro de alívio e a comentar – e mais 400 que partem para não voltarem esta gaita perde dia a dia a força de trabalho qualidade humana que eram o motor do desenvolvimento nesta banda e se calhar o futuro não será muito risonho – e virando-se de costas para o local onde o avião desaparecia pega num cigarro, acende-o e solta uma primeira baforada quase semelhante à turbulência produzida pelas turbinas dos aviões a jacto.
A ignorância nem sempre é condenável e neste caso tão pouco alguém poderia imaginar que no céu sideral o Cruzeiro do Sul telefonava à Estrela-d’alva inteirando-se se o Pólo Norte ainda se encontrava no norte, a Calote Esférica andava mais arisca lixando Árctico nas curvas do gelo, ou se os índios tinham feito uma manifestação contra a canonização do Búfalo Bill, evitando todavia tocar no absurdo de uma descolonização negociada à mesa do bar dum hotel no Alvor. No carro porém, os ponteiros do relógio avançavam dando a perceber que mais 5 horas e rompia o sol no oriente, restando depois 2 horas para o jovem trabalhador tomar banho mudar de farda engraxar os sapatos ingerir algo ligeiro e pernas que te quero que o trabalho não esperava. Voltaria a percorrer as mesmas ruas e avenidas desde o largo do mercado até ao terminal de carga isto se não aparecesse um fedelho armado de Kalashnikov Uzi ou mesmo uma G3 e decidisse fazer uma caçada ao colono, ficando indeciso entre a rotina que nem sempre é habitual ou ficar a dormir numa cama feita de caixotes carregados de utensílios que só serviriam a quem chegado ao destino usufruísse de casa para meter dentro os seus pertences, e estremeceu. Seguramente não se revia numa situação análoga, mas perante um cenário de fuga protagonizada pela mãe – Porra perderam o que tinham na metrópole e se a cota tiver de bazar onde vai ficar quem lhe dará guarida – esquecido momentaneamente que existiam familiares vivos que nunca a abandonariam em terras da Maria da Fonte. Inquestionável tratar-se dum cenário aterrador para um homem da sua idade mas dava conta de quão impotente eram os humanos perante dilúvios pois JV não era propriamente um crente no conceito religioso do termo.
A torre de controlo começava pelo cansaço do observador a perder a beleza arquitectónica e imaginou o espaço transformado em posto de vigia num campo de concentração. Seriam umas quantas centenas de metros até chegar ao terminal mas o tempo não tinha tempo a imaginação voava à velocidade do pensamento e nesse preciso momento o jovem metido na pele de filho sente um aperto na garganta que o impede de blasfemar contra o opressor, não evitando contudo náuseas ante a visão de um hipotético holocausto. Longe dali dormia sossegada uma mulher adulta, capaz de perceber que o fim do mundo não seria em cuecas mas estava perto para muita boa gente e a guerra que dava sinais de vida ser uma brincadeira organizada por idiotas incapazes de suportar a dor dum parto natural, mas arvorados em corajosos, pseudo divindades com tendências para destituir do trono celestial Deus “omni” em tudo, rezando a cada noite que o seu muleque chegasse inteiro a casa, convicta que o Senhor acataria as preces mesmo que o desmiolado não alinhasse na crendice de haver de virgens celestiais.
Quase no limite da cidade de cimento, passavam treze minutos da uma da manhã, noite silenciosa quando JV estaciona a viatura de serviço no local habitual, apenas quando despegava turno para lá da meia-noite. Após pendurar as chaves no chaveiro situado por cima da secretária comum aos outros oficiais, observa a papelada em cima da mesma e vendo que os manifestos de carga para o 1º voo da manhã estavam no seu devido lugar olha de relance o resto do escritório, abana a cabeça em sinal de aprovação ao trabalho dos colegas e chaves do Ford na mão, bater de porta da secretaria, abertura da porta do carro do lado contrário ao condutor não fosse um guerrilheiro recrutado à pressa fazer tiro ao boneco, um chega para lá passando por cima da manette de velocidades, meia volta com a chave metida na ignição, motor a trabalhar mínimos ligados, e quase em slow motion faz com que o carro siga a meio silêncio até ao parque destinado a passageiros, acompanhantes taxistas, curiosos, e também funcionários que operavam diariamente naquele lugar e por razões que lhe passavam ao lado não podiam estacionar dentro das instalações.
Chegara a hora de ir para casa, não sem antes dar uma espreitadela na discoteca, inteirar-se do movimento e se casualmente uma jeitosa tivesse perdido a boleia generosamente oferecer-se para a levar para o apartamento alugado para as cambalhotas, optando todavia dar uma saltada até à praia parando no parque de estacionamento do Restinga, um bar sobejamente conhecido e que aquela hora estava fechado. De facto sentia necessidade de respirar aquele ar que ainda não estava infestado de slogans e que chegava através das ondas, molhar os pés na água salgada, não que tivesse sarna, mas porque desde pequeno se habituara a ter o Atlântico Sul como o mais sigiloso confidente. Já no areal desenha com um pequeno galho o mapa-mundo, as possessões lusitanas, espaço aéreo e marítimo que sobrava para o resto dos países de acordo com a ocupação de todas as províncias e arquipélagos e ilhas pertencentes a Portugal e exclama – Porra então foi por causa desta merda que deram a golpada 3/5 do mar e ar são nossos – e o mundo parece desabar. Os buracos dos caranguejos assemelhavam-se a crateras de vulcões e tudo o que aprendera desde os bancos de escola aparecia distorcido aos seus olhos como se tratasse de parte dum num filme versando a invasão da capital da Savana pelos extraterrestres, um país situado entre a miséria dos descendentes dos Maias e os Esquimós oriundos do gelado Plutão. No fundo, e arfando, vê-se perante um logro internacional, tremenda vigarice por parte de tipos que tinham obrigação de respeitarem o próximo mesmo que estes estivessem a milhares de quilómetros de distancia, um Crime Lesa Ingenuidade, e deixa-se cair de costas perto da rebentação onde pequenas e inofensivas ondas começam a molhar os pés descalços. Fecha os olhos e adormece por breves minutos, talvez 3 ou 4, ou menos, e despertando decide passar pelo apartamento afim de deixar dinheiro à empregada de dia antes de seguir até casa. Pretendia chegar calmo dar entender caso alguém o esperasse que o turno fora longo mas valera a pena pelo ar disfarçado de contentamento que decide ostentar, numas representação teatral que até então nunca supusera ter engenho para tal. Das malhas que o império tecera houvera muitas que os poetas não souberam ou ousaram contar, e não seria ele a colocar em dúvida; as armas e os barões foram assinalados por quem cruzara tempos que ele jamais cruzaria, e a família não pagara bilhete para vê-lo no papel de actor dramático.
A cacimba era ligeira, o relógio dentro de casa e no carro marca 5h12’ ao estacionar o carro à porta da vivenda. A noite cerrada ainda marcava presença, a vizinhança que restava literalmente mergulhada no sono profundo, em casa a paz imperava e na varanda do rés-do-chão qual guardião do templo um cão abana a cauda em sinal de satisfação, sem que o dono sentisse o cheiro próprio dos vadios, e pelo aspecto alguém lhe tinha dado um banho de mangueira com direito a massagem e perfume de senhora.
- Dog as cadelas pregaram-te uma partida
- Humm auauau
- Paciência amanhã caças uma que ande por aí sem cachorro sabes com tanta malta a bazar vão sobrar rafeiras desprotegidas à espera dum cãogalã para as confortar durante o cio vai ser um fartote
Após fazer uma pequena festa no cachaço fechou a porta que dava para a rua e subiu as escadas de acesso ao quarto e despindo-se entra no privado para um banho rápido de água corrente e já composto senta-se na varanda, acende um cigarro, conta os que ainda restavam no maço, e deixa que os olhos vagueiem pela cercania. A cidade escurecia dia a dia de tão vazia que ia ficando, mas a cama esperava por si, nem que fosse para se colocar na horizontal duas horas, já que às 9h o monta-cargas tinha de justificar utilidade e o preço que a companhia despendera na sua aquisição, e já descia para o pequeno-almoço quando a meio das escadas escuta uma conversa entre o criado interno e a lavadeira, parando momentaneamente na tentativa de saber de que se tratava aquele quase cochichar. Nada que já não escutara fora de casa entre os calcinhas armados em políticos formados nos “muceques” do leste europeu, alguns nas universidades que licenciavam tipos só tinham frequentado cabarets da coxa, mas como a barriga apertava reiniciou a descida permitindo que os dois ouvissem os passos e acabassem com a lenga-lenga e ele pudesse comer em paz dizer olá ao resto do pessoal de casa e bazar até ao aeroporto que o dia apresentar-se-ia duro como estava a ser nas últimas semanas, e receber 20 contos por mês não era de se fazer rogado, mesmo que metade fosse em horas extraordinárias, algumas a aturar gente ordinária desculpando-as por perceber o estado de falta de controlo emocional ante o clima de quase eminente guerra aberta. Os tiros que ouvia, balas a assobiarem por sobre o telhado, descuidos de guerrilheiros de ocasião sem idade para ir à caça do javali, dava-lhe uma visão pouco animadora da situação e despede-se de forma usual.
- Olá tão bons tchau as paletes esperam-me não embarcam sozinhas nem vazias e não estou para o tio VV me lixar o cumbu no fim do mês
- Vai e não te percas nas curvas duma hospedeira de bordo
O destino distava de casa cerca de 20 minutos e ele queria tomar café antes de chegar ao aeroporto; os aviões levavam mais tempo a levantar voo e a aterrar no destino e o tempo de viagem por sua culpa não se alteraria. O dia no entanto começara mal porque JV vê-se insultado à entrada do corredor de acesso ao local de trabalho, não valia a pena arriscar a vida por causa da imbecilidade de quem não distinguia um burro dum asno, quiçá não soubesse escrever ou ler, fora parido atrás dum Embondeiro, e pior, o pai talvez não fosse irmão do tio, até porque a meio da manhã a coisa já se compusera por obra e graça da entidade patronal que o avisara da urgência de se deslocar ao gabinete do director de escala duma das mais prestigiadas companhias aéreas, não sabendo na altura qual o assunto mas que não seria certamente para carregar caixotes no Niassa, um navio atracado no porto para lá do largo Diogo Cão que de cão só tinha o nome. Efectuada a reunião e a pedido não comentaria rigorosamente nada com ninguém, e nada era absolutamente zero. Interessava sim continuar a trabalhar com afinco pois o pessoal que atafulhava a sala de embarque além dos 20 kg que tinham direito a levar às costas até ao assento e o resto que era colocado nos porões ou nos containers ainda reclamava junto aos oficiais de carga para que estes fizessem viajar os penicos no mesmo voo em que embarcavam. Custava e não negava, cirandar pela zona de embarque reservada a passageiros, ver crianças mijadas ranhosas e cheirando a cocó, camas improvisadas atapetando o chão, e a pintura de grande Neves e Sousa ser desprezada por aquela gente, infelizmente mais interessados em fazer um manguito aos revolucionários pés descalços que apreciar a revolução artística contida na obra de tão ilustre pintor, e gravava na memória diálogos que seriam difíceis de esquecer.
- Mão tenho fome quero fazer chichi onde está o primo Zélio
- Comes mais tarde a mãe vai comprar à pastelaria do senhor Gamito aqueles bolos que tu gostas
- Mentirosa é uma mentirosa a pastelaria já fechou
- O Zélio está em Lisboa filho
- Não quero ir vou ficar a brincar com os amigos do bairro
No canto contrário a tristeza era quase a mesma, o panorama quase tão mal cheiroso como o do lado oposto, os temas diferentes devido à idade dos palradores que pela indumentária fizeram lembrar a JV os filmes da série Mundo Cão, só faltando um concerto de bofetadas em Réu Menor, comer percevejos tudo porque as carraças tinham emigrado na companhia das bitacaias, e o Portugal de aquém e além-mar em África perdia dimensão territorial e humana.
- Ó Vitório diz-me com sinceridade que vais fazer quando chegares à metrópole
- Amigo Casimiro francamente não sei mas espero que os meus tios me arranjem emprego como sapateiro o velho está a ficar um pouco cansado e o filho é tipo borboleta ora poisa numa ora monta outra enfim
- E tu Sérgio Pata não pareces perturbado com o que eventualmente possa acontecer lá no puto.
- Caros cá o rapaz vai para o Brasil lá pelo menos gozo um Carnaval com brasileiras a sério fartei-me de batucadas fado e férias graciosas dos funcionários do estado os gajos podiam gozá-las no reino dos Algarves mas ao menos deixado as filhas na banda.
Hora de almoço, 13 horas, e não passava pela cachimónia a JV deliciar-se com a comida do Catering, mesmo sendo a custo zero. Tempo não faltava o próximo voo seria às 16 horas as paletes estavam carregadas, o “chefão” não se ia chatear por causa do relógio de ponto estar a trabalhar com o menino a curtir um bife à Monte Carlo, beber um fino com esboço de gravata, tomar um café feito com grainha da terra moída ouvindo uma gravação do programa Cosmos, e deleitar-se com as trancas das raparigas que ainda não tinham comprado bilhetes para visitarem a terra onde a produção de heróis era aplaudida por milhões de portugueses que igualmente tinham lutado, e afincadamente, pela implantação da democracia, não obstante desconhecerem que tal como o Pau de Cabinda também o Cravo só permitia excitações temporárias. No fundo, a tripulação dos aviões estava-se borrifando para onde o menino almoçava ou se jantava, se as cuecas eram de seda ou a farda fora paga do próprio bolso, pois tudo estaria ok se a pista estivesse livre para a descolagem ou aterragem a companhia pagasse o ordenado e os hotéis tivessem quartos disponíveis a cada viajem. A guerra fora convenientemente mantida, o pessoal não fizera greve e o futuro só a deus pertencia, assim pensavam os crentes e os que só acreditavam erguer-se um país à força da martelada e dos cortes desferidos pela foice duma reforma agrária que assolava pelo país detentor das possessões ultramarinas.
O dia tem 24 horas, mas para JV parecia às vezes atingir as 48 até 72 e curiosamente ninguém dizia “a noite tem 24 horas” o que era no mínimo estranho, mas quem era para contrariar o que fora aceite através dos séculos. Houvesse um dilúvio e talvez os gorilas sobreviventes mudassem os conceitos, corria no pensamento do jovem oficial de carga, quando súbito sente uma mãe poisar no ombro ao mesmo tempo que uma voz meiga lhe dirigia as boas tardes.
- Não contava ver-te por aqui Jacobino fizeste greve ou caíste da asa dum avião
-Ri-te mas às vezes tenho vontade de ser Ícaro mas vendo-te assim tão leve levemente como quem chama por mim
- Vai-te catar deu-te agora para macho sedutor nos últimos 3 meses sequer te lembraste onde mora aqui a boazona
- Não te chateies comigo Vénia se soubesses o que tenho penado a trabalhar ias a Roma pedir ao Papa que intercedesse por mim.
- E logo à noite jantas em casa ou na casa de quem te espera para casar
- Não tenho disso e tu sabes ou pensas que o Tordinho não me contou acerca duma pergunta estranha feita por amiga do ‘minino’
- Sacana do linguarudo
- Jantamos se estiveres disponível Vénia
- Estou livre sim e pode ser na Caçarola mas não sei se está aberta
- Está sim encontramo-nos às 20:30
- Combinado Cobi beijo tchau
Já só Jacobino permite-se sorrir e soltar algo como – afinal o dia parece que se vai compor a Vénia está cada vez mais apetitosa – e a decisão de dormir no apartamento fazia sentido até porque a partir da ½ noite o recolher era obrigatório para quem não fosse portador de salvo-conduto, e ele não estava para dar a saber que tinha um no vidro do carro. Porém o dever chamava-o, era do tipo cumpridor das suas obrigações, e dali a 1hora e 40 minutos o avião levantaria voo com o porão carregado com 5 paletes, bastando para tanto levá-las para a pista e loader com elas, sendo difícil disfarçar um certo ar de prazer estampado no rosto algo que não passou despercebido aos colegas e muito menos ao pessoal da alfândega.
- Olá esta noite alguém vai dançar o Último Tango em Paris
- Malta tudo bem ainda há combustível para os aviões
- Féfé não te dizia que o gajo ao sair do carro vinha com ar de Alain Delon
- Na muche Bil há gata quente em telhado de zinco
- Meus vamos lá saber uma coisa o rapaz vai despegar ás 19 h por isso se houver malamba para depois um de vocês quebra o galho tenho um compromisso familiar e não falto por causa dumas horitas a mais
- Calma excepcionalmente hoje não há nada para fazer depois das oito e nós fechamos o circo
- Obrigado amanhã troco com um de vós
O resto do turno correu sobre esferas e às 19:15 JV conduzia o carro em direcção ao apartamento afim de se inteirar que este estava em ordem especialmente se a empregada mudara os lençóis. Lealdina nunca deixara ficar mal os patrões, e as 5 casas a seu cargo estavam sempre um brinco, dignas dum soba que no seu entendimento os reis eram uns gajos porcos, não que tivesse servidos em palácios reais mas pelo que ouvira contar às anciãs da sua terra natal. Indubitavelmente viesse o diabo e escolhesse pois a si importava os 1.500 angolares mensais que traduzido em escudos representava o mesmo valor, mandando religiosamente 500 para a mãe, entrevada e sem homem que a sustentasse, sendo o resto destinado às despesas de casa e de um filho com 5 anos que o patife do pai desaparecera sem deixar rasto, mas que ela tudo faria para que o menino um dia fosse engenheiro, duvidando todavia se esse sonho se cumpriria quando via as colegas de profissão a abalarem dia após dia duma terra a que muitas pensaram ser ali que encontrariam, mais que o príncipe encantado, um futuro sem miséria. No seu caso os Açores continuavam a ser ilhas e assim se manteriam até que um acidente estratosférico as afundasse, tipo Atlântida, mas crente dispensava altares dourados em templos sumptuosos para rezar; bastava-lhe a fé – Ah grande Lealdina melhor que suites em hotéis de 5 estrelas – e JV fechando calmamente a porta do apartamento desce sem pressas os dois andares que separavam do hall do prédio e já controlada a ansiedade dirige-se ao restaurante onde esperaria por Vénia acaso não o deixasse a falar com os botões.
O espaço encerrava às 22 horas e ambos sabiam que os atrasos não eram aconselháveis, as demoras pagavam-se caras, pois por cautela quase tudo fechava cedo não fosse os guerrilheiros estarem com uma barrigada de fome e resolvessem pedir atenciosamente que os servissem fiado até ao dia seguinte, e às 20:36 um casalinho, fingindo estarem apaixonados, sentavam-se ao balcão para um Bife à Casa, Coca-Cola, e de sobremesa Pudim Flan, o doce que com o seu tremer suscitava aos casais outro tipo de tremedeira. Tudo se encaminhava para uma noite de combate amoroso onde sairia vencedor a fadiga.
- Como correu o dia entre caixotes querido
- Podia ser pior Vénia mas depois de te ver tudo mudou
- Hum agora sou a tua fada querido
- Espero que não seja madrinha
- Apanho-te na horizontal e levantas voo mesmo sem asas
- Acho que tenho o trem de aterragem em condições linda
O jantar não duraria para sempre e antes que o empregado sugerisse que pagassem a conta JV faz sinal para que a trouxesse pagando em dinheiro vivo que naquela altura do campeonato cheques não vinham a propósito, e às 21:53 o casal saía abraçado do Snack-bar em direcção aos carros estacionados a pouco mais de 50 metros decidindo passarem pelo apartamento afim de Vénia deixar o seu no estacionamento privado do prédio antes de se dirigirem à discoteca que tinham escolhido para dar um giro. Por muito que custasse aos pais eram jovens donos dos seus apetites, sabedores de como fazê-las sem se virem a arrepender, e se as farmácias vendiam preservativos e anticoncepcionais eras para serem comprados e o dinheiro fizera-se para se gastar em coisas úteis.
- Jacobino o apartamento está um luxo a renda é cara ou é teu
- Só alugado sabes que com a minha profissão trabalhar até às quinhentas prefiro não acordar os velhos
- Vai contar histórias a outra e trata de arranjar uma Cubalivre com mais Coca-Cola que Rum estou sequiosa
- Vou preparar duas põe-te à vontade olha que da varanda podes apreciar o paraíso vê-se a baía quando o céu está límpido como hoje.
- Beijo amor não demores que a coisa pode arrefecer
No apartamento do lado, um casal de meia-idade baixa o som da telefonia ao aperceber-se de gemidos que atravessavam as paredes do quarto. Havia alguns trechos musicais que valiam menos que o arfar duma parelha a fazer amor, e o casal sorrindo abraça-se como a preparara-se para o segundo andamento de uma Sinfonia Sexual em Ré Maior que eles também queriam executar, e a idade permitia-o. O elevador do prédio ainda funcionava independente algum vandalismo que já se fazia sentir por toda a cidade e pelas 7:39 o casal de idosos repara que do apartamento vizinho ao seu, saía um jovem casal mas que a rapariga não era a mesma da última vez que tinham visto sair de lá alguém de saias que não fosse a empregada, e sorriram atirando um bons dias vizinhos, tirada que levou Vénia Veríssima a sorrir envaidecida pensando para as alças do soutien – Posso não ser a primeira mas serei a última a entrar aqui – e com um toque aligeirado nos cabelos agradece o cumprimento.
Vinte e quatro anos separavam o dia em que JV e VV deixavam o apartamento numa cidade do antigo império lusitano e situada na costa ocidental para lá do equador e o momento em que Antero Dalhe, sentado numa esplanada de hotel em Marselha saboreava um café lendo uma passagem da bíblia, e algumas referências curiosas a Sodoma e Gomorra, e pela mesma razão que certos historiadores colocavam o incesto na família Lot sugerindo ao leitor que as filhas deste teriam embebedado o pai para que este as fecundasse de acordo com o desígnio do Senhor também ele entendia que no caso de Adão e Eva acontecera o mesmo fenómeno convencendo-se abusivamente que Abel teria tido um caso de incesto com a mãe razão de possuído pelo ciúme Caim leva a cabo o primeiro crime passional na história da humanidade. Considerava ainda que todo ao longo de todo relato que constituía a feitura do Livro Sagrado explicitava inequivocamente o estupro a volúpia o desejo extra conjugal actos por demais evidentes na história do cristianismo. No seu entender os homens teriam evoluído em inúmero campos mas o ADN mantivera-se inalterável e tal como no passado a miséria humana sobrevivera a todas as tentativas de purificação do espírito pensando em voz alta – Viemos do pó e ao pó voltaremos – assumindo perante as pessoas que o rodeavam a expressão em si e o sentido que ela comportava pois era para si a essência da própria humanidade tal como ele a conhecia.
Embrenhado na leitura dos artigos e nos pensamentos que a ela diziam respeito tarda em perceber, sentada na mesa ao lado, uma mulher a rondar os 44 anos observa-o com ar de, conheço-te mas não sei donde, sem que o atrevimento lhe facultasse passaporte para atravessar a fronteira que lhe permitiria entabular conversa com o pretenso conhecido, até porque talvez fosse apenas parecido com alguém que conhecera algures num passado sem data, sendo sacudida pela voz do empregado – Deseja outro café doutor Dalhe – e na dicção aquando do sim afirmativo da resposta. Se a imagem era familiar o nome nada dizia e na verdade também não acabava o mundo por isso já que estava de passagem e o próximo ancoradouro seria o aeroporto Charles de Gaule, e ainda absorta nas dúvidas surgidas, um homem para lá dos 70 anos aproximando-se numa passada segura fala com voz clara e num perfeito português.
- Estou despachado podemos ir o motorista espera-nos à porta do hotel Vénia
- Por mim podemos ir pai a despesa está paga e a conta do hotel também o bilhete de avião está contigo olha que amanhã tenho de chegar a horas a Paris e apanhar o avião para Lisboa não o posso perder
A vida para Antero, que rondava os 47 anos, fora um esquivar às ribanceiras, dobrar esquinas pontiagudas sem arranhões, negócios diamantíferos à margem da lei e nas horas vagas que lhe valera basta fortuna, mas sem desperdiçar a oportunidade de comprar um diploma de licenciatura com certidão de residência num país do Leste em 1976, permitindo-lhe ascender a cargos importantes que não estavam ao alcance de qualquer indivíduo sem diploma académico, mesmo tratando-se de homens de inteligência superior. Ali quase de féria a caminho duma reforma antecipada, ao escutar o nome Vénia recordou todo um passado que teimava em conservar intacto dando justificação à existência de parte da memória, e sentiu-se atordoado. Sabia também por experiência vivencial que o destino prega muitas surpresas e jamais imaginara que um dia se cruzaria com uma mulher que eventualmente podia ser o grande amor de JV, amigo da estroinice, e que apanharia um avião exactamente no mesmo sítio que ele, no dia seguinte para Portugal, e sorriu com amargura. A vida privara-o da companhia muitos amigos e Valente um deles, não que soubesse dum óbito mas porque nunca mais soubera do seu paradeiro, e já lhe chegara ao ouvidos que o seu amigo vivia abaixo da linha de pobreza sem que soubessem por onde andava, deixando escapar à laia de lamento – Descolonização exemplar – erguendo-se de imediato para se dirigir ao interior do bar afim de pagar os dois cafés que Dr. Antero Dalhe não era homem de sair de qualquer sítio à socapa, levando contudo a satisfação de saber que podia cruzar-se com a tal Vénia no aeroporto de Paris.
A sala de embarque do aeroporto de Paris estava comme d’habitude à hora que Antero Dalhe aguardava pelo voo, dir-se-ia na Paz do Senhor revendo um pequeno artigo sobre a percepção e tomando no intervalo da leitura algumas notas na inseparável sebenta alheio ao movimento contínuo de passageiros e acompanhantes que ao falarem nos mais diversos idiomas produziam uma espécie de zumbido similar aos enxames de abelhas em diversão num celeiro, algo desagradável mas que suportava na perfeição por habituação à chinfrineira produzida pelas claques dos clubes ou dos debates políticos partidários em que todos diziam querer o mesmo por palavras diferentes e que no final o povo não percebia patavina. Simultaneamente às reflexões de carácter psicológico com que se entretinha Antero, por entre a gentalha que parecia atropelar-se como se o avião partisse antes da hora marcada, uma silhueta de mulher elegante dirigia-se para o local onde aquele se encontrava. O cabelo ondulado meio cor de caju assemelhava-se aos das deusas gregas, os olhos reluzindo em faúlhas de prazer deixavam perceber o ar felino duma predadora que se aprestava para desferir o golpe fatal num antílope indefeso, a roupa composta de saia lisa a mostrar metade do joelho, blusa sem gola a fazer sobressair um pescoço de gazela em tons de creme adocicado contrastando com a o casaco curto com botões que se desapertavam ao cair da noite condizendo com o cinza real da saia, emprestando os sapatos de meio tacão ao andar a graciosidade das bailarinas do Bolchoi, e a pouco mais de metro e meio de distância para dirigindo-se-lhe afectuosamente.
- Permita e sem querer perturbar não estava ontem numa esplanada em Marselha
- Touché madame Vénia
- Mademoiselle e como sabe o nome
- Escutei-o da boca do senhor que a acompanhava e ouvi-a chamar pai
- Bom observador senhor
- Antero Dalhe e fiquei curioso pelo nome Vénia
- Vénia Veríssima e o senhor que me acompanhava é de facto meu pai temos negócios espalhados por alguns países e ele escolheu deslocar-se de carro ao sul de Itália cheira-me de férias que e a filhinha cá esta para tapar buracos
- Prazer em conhecê-la mas sente-se e já agora que deseja tomar
- Uma cubalivre com pouco rum mas vejo que o seu “álcool preferido” é o café
- Sou de facto viciado mas se me permite qual o destino
- Primeiro vou a Lisboa e depois dou uma saltada à Madeira e no regresso estaciono no Porto
- Já agora não posso enganá-la e não deixar de elucidar que Vénia por ser um nome raro é-me familiar e queria perguntar-lhe se conheceu ou conhece Cobi…
Nesse preciso instante ouviu-se através dos altifalantes espalhados pelo aeroporto a chamada para o voo com destino a Lisboa impedindo que a pergunta fosse correctamente escutada por Vénia e que passado alguns segundos faz menção de se retirar pois chegara a hora da partida
- Pode repetir não consegui perceber
- Perguntava se acaso o nome Jacobino Valente lhe dizia alguma coisa
Vénia franziu a testa parecendo fazer um esforço para associar nome e apelido a alguém que conhecesse, mas no exacto momento em que parecia lembrar-se a resposta foi abafada pelos altifalantes que ecoavam pela sala anunciando a última chamada para o voo TAP com destino a Lisboa.
Fim