quarta-feira, março 31, 2010

À vela ou de vela...

.

Vela

.

Impugnação à vista

Vamos ver se não lhes acontece o mesmo que ao meu recurso para o TAFS e não tenham que recorrer ao Ex. Sr. PGR

http://aladerei.e-xadrez.com/2010/03/31/a-fp-vela-aprovou-os-novos-estatutos-em-assembleia-geral-que-vai-ser-impugnada-por-%c2%aba-convocatoria-conter-erros%c2%bb/

BIG MUNDO DA MARTA

"BIGMUNDODAMARTA CHEGOU À RÁDIO!!!"...‏

ÀS QUINTAS-FEIRAS JÁ SABE
É NA RÁDIO VOZ ALENQUER
ENTRE AS 21.00 E AS 22.00HORAS

93.5 FM OU 100.6 FM

OU NA INTERNET INTERNET INTERNET
WWW.ALENQUER.RADIOS.PT

ESPERO PELA TUA OPINIÃO

WWW.ALENQUER.RADIOS.PT

terça-feira, março 30, 2010

Pedaços da minh’alma

.

.

Revelação

..

.

Era a calma, o farfalhar do rio, o ondulado do vento que apaixonadamente se roçava pela frescura das águas serenas do meu Kwanza – “eniliões” de metros cúbicos por hora, minuto, segundo, lavavam o corpo em cada dia de folia.

.

Os gritos de prazer, as correrias entre a vegetação arrebatadora construíam o ser dotando-o de tudo o que de maravilhoso o Criador colocara ao serviço dos homens, enquanto que, entre sonhos, crescendo, Cito tomava consciência que o sol não brilhava de igual modo para todos os seus amigos.

Naquela manhã de Domingo, um como tantos outros, Cito não , não porque tivesse empanturrado de véspera, mas porque sentia o estômago contraído, esganado – uma sensação de “vazio-pleno” de bomba relógio quase detonando.

.

Saiu para o terreno infinito que circundava a moradia e nem se dignou a deitar um olhar ao “Dog”, preso pela trela à entrada da casota, nem reparando no aceno de rabo que este lhe dedicou – o bicho queria saltar e correr ao lado do dono, dar azo à alegria de mais um dia de brincadeira e pezudo ferradas, mas ficou-se pelo desejo.

.

Caminhou pela berma do rio; sabia que não se defrontaria nenhum animal feroz, não se cruzaria com o “Sengue” nem com Surucucu, ou qualquer bicho perigoso a não ser que aparecesse algum animal de duas patas o que era pouco provável, porque não havia memória de tal achado arqueológico por aquelas bandas.

.

Ia pontapeando delicadamente os ramos secos, uma ou outra pedra atrevida, e depois atirava-a ao rio provocando círculos, tão iguais aos que seriam as rodas da sua vida até morrer.

.

Pela cabeça passeavam as imagens do jantar de Sábado, imagens que o martelavam, corroíam-nos de uma forma que não encontrava justificação.

O que se estava a passar, que significados tinham as nomenclaturas familiares.

O aperto que sentia sobre estas dúvidas durava há algum tempo.

.

No Sábado anterior, aproveitando a ausência do pai e tentou abrir as gavetas da secretária do escritório de casa, mas estava fechada – que guardaria de tão importante que ninguém podia ver ou tocar?

Esse facto aumentara a angústia mais do que a curiosidade, e o jantar da véspera fora um suplício; falava-se de tudo um pouco e pouco ou nada do que falavam o tocava.

.

Quando o tio não jantava em casa eram sempre quatro à mesa, tal como naquela noite. A mãe, o avô o pai, o filho o filho o neto e mulher do avô, a mãe do pai, que era também a mãe dele.

Era estranha aquela combinação como estranho era a cor que os separava e a diferença de idades da mãe em relação ao pai.

.

Nada daquilo condizia com as famílias tradicionais dos seus amigos mais íntimos, dos amigos de lancharada e aniversários, mas até aquele momento, Cito nunca se debruçara a sério sobre tal, e nem a idade de menino lhe tinha dado conhecimentos para perceber a bagunça que era a sua família.

.

Tinha tudo que queria, quase tudo, e às vezes também ganhava como subsídio de patifarias um par de tabefes – quando isso acontecia vingava-se no jornal do avô, que não dispensava, e que, claro estava, apenas lhe restava saltar o muro e safar o canastro de umas boas palmadas, se bem que, as que lhe eram prometidas mais tarde mordiam-lhe o “mataco”.

.

Mas aquele dia e aquela manhã, não era “um qualquer” e o miúdo sentia que algo estava para acontecer.

Certos silêncios caseiros e o assobiar para o lado por arte dos tios sobre o passado começara a tomar corpo, e paladar da saliva dava indicadores de “sal amargo”.

.

Cito já caminhara à meia hora em direcção a nascente, num caminhar quase ao retardador – a sua expressão endurecia com o andar, as maçãs do rosto quase rasgavam a pele achocolatada e a visão turvava-se.

.

Parou junto a uma pedra que conversava com a corrente do rio – olhou a água e viu espelhado uma imagem que não era a que os espelhos de casa reflectiam; estava diferente, mais velho, estava cansado e só acordara há duas horas.

A vida começava a pregar-lhe a primeira rasteira e ele tropeçara.

.

Sentiu as pernas tremerem, as forças abandonarem o corpo e sentou-se. Postou o olhar perdido na “outra margem o rio” e pareceu-lhe ver um vulto que, semi-escondido no arvoredo, o observava.

Forçou o olhar e apenas viu sombras, folhas dançando, luz entre a densa mata – não havia gente apenas “solidão”.

.

Atingiu o clímax, e não a conteve, não se debateu, e deixou rolar as lágrimas que escorrendo até aos cantos da boca lhe transmitiam uma amargo ácido. Pela primeira vez sabia o verdadeiro sentido do silêncio, das gavetas fechadas.

.

O “Senhor” dera-lhe a soberba oportunidade de descobrir que era “Órfão” – e ergueu os olhos ao céu, e também pela mesmíssima primeira vez conheceu o Ódio; apeteceu-lhe matar Deus.

.

Ergueu-se, e começou a correr, aumentado a velocidade a cada soluço a cada lágrima; corria como louco perdido entre os raios de sol que o perseguiam por entre as copas das árvores – e correu, correu, e não escutou o latido do “Dog” e só parou dentro de casa; o vento secara-lhe as lágrimas quando corria para o desespero.

.

No salão, sentada como , na testa, algumas rugas de expressão; estava a avó.

Esta olhou-o no fundo dos olhos, para além da carne, dentro da alma.

Sabia que o seu “neto” chorara mas nada lhe disse ou esboçou qualquer gesto.Nem um aceno de compreensão.

.

O neto estava estático olhava-a, fulminava-a, tremia como varas verdes, os olhos relampejavam e o cérebro esturricava, e não se mexia.

.

Ela levantou-se e dirigiu-se pausadamente para a cozinha; passou por Cito, virou propositadamente a cabeça para o lado contrário, para o lado de fora da casa, pela janela da vida, mas suficientemente atenta que lhe permitiu escutar o que esperava, e perceber o que no meio de um grito abafado vindo do peito o neto disse.

.

- Mãe! Quero comer.

.

A Avó encolheu os ombros; também não tinha tomado o “matinal” pequeno-almoço.

Respondeu-lhe ao passar pela soleira da porta.

.

- A comida está na mesa.

.


segunda-feira, março 29, 2010

Pedaços da minh’alma

Boa vida tio Hernâni “The Sheriff

Que vida colorida «in Luanda bay»

.
.

“Matondo“

.

O maralhal reuniu-se no quintal; Ruy Tadeu, Cito andavam fulos encafuados, associado à tristeza inconformada de não poderem alcançar os seus mais simbólicos objectivos de garotões parvos.

.

Há três semanas que tentavam em vão caçar o “Matondo” um gatarrão com uma cabeça enorme, feio, castanho amarelado com meia dúzias de riscas pretas, e que andava a brincar com os manos numa de gato escondido de rabo de fora. A verdade é que Matondo era esperto, e, por muros e telhados, passeios ruas avenidas e quintais e jardins, o “felino” não ia em cantigas, nem se deixava apanhar.

Naquela tarde os rapazes tinham-se u8nido para montar uma estratégia irreprimível, pra definitivamente caçar o bichano, que naquelas cabecinhas era sinónimo de extermínio “gatal” – sentiam que seria uma epopeia só comparável às caçadas nos safaris ilegais, em que os defensores da estabilidade no mundo e arredores, apanhavam tudo, até as espécies que estavam catalogadas como em pré-extinção.

Os cuidados eram tantos e tais, que até o Boby, mais um dos rafeiros militantes da casa de Cito, escutava atentamente as sugestões, especialmente as que eram proferidas pelo dono amigo.

.

Ruy coloca no chão de pedra um papel mal amanhado, com um desenho bacoco da Geografia da zona, por onde iriam furibundamente atrás do desgraçado e condenado gato.

Tadeu diz de sua justiça que deveriam continuar a colocar um carapau junto à casota do Boby, ficar de sentinela, e quando o larápio viesse roubar o peixinho atacavam à fisgada e depois à estocada com os ferros de jogar ao “mundo”. Das outras vezes esperavam que o cachorro cumprisse o seu trabalho como lugar-tenente do trio, mas o vira-latas nunca lá estava quando era preciso.

A Cito sempre lhe agradou a ideia de caçar o animal dentro de portas porque assim ninguém os podia acusar de assassinato – seria para defender a vida de um imaginário ataque animalesco e que seria uma atenuante quando fossem acusados pelos “cotas”. Não estava para levar dois tabefes por ter cometido um crime pré-meditado.

.

Ruy não concordava desta vez.

.

- Não! Desta não concordo; o gajo vai safar-se saltando o muro que liga a minha casa com o quintal do Joka, depois “escapula” até à Fábrica de Gelo, e de seguida só pára no cemitério mas aí nós não podemos dar a estocada final. É chão sagrado terreno neutro.

.

Cito interrompe.

.

- Ruy! Isso é muito longe para correr atrás do Matondo – vamos chegar com a língua de fora.

.

Tadeu remata para por um ponto final.

.

- Também acho que o gajo safa-se, melhor apanhá-lo com o focinho no prato.

.

É a vez de Ruy, presentear os amigo com um ar que normalmente não se via, mostrar toda a sua formação na “arte de bem caçar todo o gato” e explica.

.

- O Boby ataca o gajo, ele salta o muro, o Tadeu fica entre o engodo e a Fábrica de Gelo, Cito na esquina antes da fábrica, e eu corto a passagem que dá para o cemitério – o gatarrão fica encurralado e não tem esperteza para procurar outro caminho

.

Tadeu olha para Cito e encolhe os ombros. Porque não! Se calhar o Ruysinho tinha estudado aquela malamba no livro do Mandrake e até podia ser uma tarde gloriosa.

Montaram o arsenal todo e espalharam-se pelos trilhos do combate.

O tempo correu e nada de Matondo; nesse dia o gatarrão não apareceu até ao por do sol. O estratagema continuou durante uma semana até que Ruy disse que desistia.

.

- Porquê Ruy?

.

À pergunta em simultâneo de Tadeu e Cito o amigo confessou que tinha levado um puxão de orelhas porque a mãe dera conta que ele andava a pifar o pescado da geleira. Claro que os amigos ficaram solidários e cobinaram qu iam trazer o pescado mas à vez.

O tempo correu, o chicharro, a posta de pescada, o rabo-de-garoupa, e até baiacú usaram, mas a verdade é que o Matando levou sumiço.

.

No fim das férias grandes Ruy colocou novamente a hipótese de recomeçarem as esperas ao Matondo, mas Tadeu e Cito não concordaram.

.

- Não irmão, já não me apetece cação gatos.

.

Cito também tem o mesmo sentimento que Tadeu em relação ao gatinho, que afinal a única coisa que tentava todos os dias era não morre à fome, desde que os homens grandes construíam prédios, arruamentos, destruindo o seu alimento natural, no seu próprio ambiente.

Estavam a crescer, tinham começado a olhar para os joelhos das meninas, e a sentirem um certo inchaço entre pernas que era desconfortante, sobretudo quando estavam com elas, e nem precisavam de dançar slows.

A família agradeceu esta mudança de atitude, pois o que os palermas dos putos andavam a estragar em comida dava para alimentar muito menino pobre que vivia nos bairros pobres, e para além disso sempre pouparam uns castigos incómodos.

.

Vão quarenta e cinco anos, Cito nunca mais viu o Ruy e o Tadeu, mas sabe e sente dentro do peito que eles também teriam a mesma sensação de alegria se hoje recordassem a caçada ao Matondo.

.

Felizmente não se assassinou o bichinho, nem voltaram a cometer o “crime” de estragar comida, apenas porque não tinham consciência da fome que muitos meninos como eles passavam

.

Como o respeito a decisão que tomaram naquela altura, e como aprendi a gostar deste “meu amigo” Cito.

.




domingo, março 28, 2010

Pedaços de minh'alma

Mabubas, 1958


.
.

Funeral do Gordalheiro

.

Em passo seguro, denotando perfeito conhecimento da área, um homem jovem, moreno, farta cabeleira e bigode rosqueiro pisava a relva crescida, quase capim, do largo que outrora servira de palco a gloriosos jogos de futebol entre candengues amigos.

A sua memória recuou no tempo, distante, em que a inocência era a única maldade que tinham no corpo.

E pareceu-lhe escutar quase em estéreo....

.

Mãaaaaaeeeeeeeiiiiiiii!!!

.

Na cozinha Albertina olhou para Madalena com o sobrolho franzido e deixou escapar:

.

- O “farrusquinho” acordou, e trás o diabo no corpo.

- “Aspatroa queresquitomis conta dosminino?”

.

A avó, sorriu, pois sabia que Madalena, se o petiz saísse do trilho, sacava uma palmada no rabo do puto e o choro acabava enterrado no estômago tendo como carpideiras uma data de soluços fingidos.

.

- É melhor Madalena, assim ele inicia o dia a toque de caixa!

- Já vai, MininoCito, já vó

.

Ao escutar a voz “adamastora” de Madalena, o puto achou por bem não fazer ondas naquela parte do corno de África para não estragar o dia; estava de férias, ia encontrar-se com os amigos para um tremuno de 4x4 na relva pisada quase careca do jardim e o terror não pedia licença a Deus para lhe engomar os calções contra o rabo.

Depois de comer, , calçou os Quedes de Sanjo, botou água no cantil, e ao pescoço pendurou uma toalha. Parecia o Mário Coluna.

No rádio da cozinha tocava uma charanga sem jeito, daquelas que tirava a calma à preguiça, quando Cito, olhando o relógio que marcava 10:15, dedica às duas mulheres um “tchau que zarpo”, mas voltou a trás para perguntar o que era o almoço.

.

- Línguasdipreguntadó, rematou Madalena.

- Bolas que minh’ama tá chifruda...

.

E Cito basou correndo em direcção ao Largo; eram 3 minutos em passo de aquecimento.

Estava uma manhã de sol, um pouco fresca, a temperatura rondaria os 19/20 graus, a humidade, um pouco maior para aí uns 70%, mas a vontade era muito maior.

.

No largo juntar-se-iam Vaitalha, Tormenta, Basuca, Tião, Miliguero, Xundito, Saffado, Crepsinho, ele, e Gordalheiro, normalmente só jogava porque era dono da bola...e só à baliza para não atrapalhar o esférico.

Entre palmadas e risadas, contos de encantar, “combinanços” para uma viagem da parte de tarde ao morro Miramar, esperavam ansiosos por Gordalheiro que não chegara. Naquelas cabeças pequeninas, estranhava-se a demora do amiguinho que era sempre dos primeiros a chegar.

Tião fala que no dia anterior um camião tinha atropelado um menino mas não conseguira saber quem era. A notícia começou a martelar a cabeça do grupo. “E se tivesse sido o Gordalheiro?”

O silêncio tomou conta das bocas, quando na embocadura do largo, deram conta que passava um estranho cortejo, com carro preto em marcha de enterro e um montão de pessoas a acompanhar entre lágrimas e abraços de conforto.

Os olhos dos miúdos começaram a lavar a saída para que as lágrimas pudessem brotar sem arranhar a menina dos olhos. Não queriam acreditar que Gordalheiro, um gajo mais ou menos porreiro, tivesse batido a bota!

Sem bola e com a fome a começar a roer por dentro, mais pelo medo do que por vazio no estômago, decidiram sentarem-se na berma da caixa de areia que ficava no meio do largo, onde costumavam fazer os concursos de “saltos para areia” a conjecturar.

Vaitalha rasga o silêncio com um desabafo:

.

- O Gordalheiro ao menos podia ter pedido a alguém que trouxesse a bola. Agora vamos ter de arranjar uma!

.

Basuca reforça:

.

- O gajo é um forreta, agarrado, bolas. Vamos embora que hoje já não quero jogar – morre e leva a boa com ele...aca!

.

Estavam entre lamentações e acusações quando, vindo do lado contrário da entrada do largo, escutam uma bola a bater no chão, e um...

.

- Tavam à minh’aspera! Já escolheram as equipas?

.

Viraram-se de repente, e viram Gordalheiro todo satisfeito; trazia um equipamento novo e ostentava, sorridente, umas joelheiras novas e também “cotoveleiras de Guarda-redes”.

Entre sorrisos, palmadas, e ares de alívio os amiguinhos desfizeram-se em palavras de amizade, até que Gordalheiro pergunta:

.

- Já escolheram a equipa onde vou jogar?

.

Saffado, que fazia jus ao nome, irritado com a demora da “bola” dá uma cotovelada a Cito e dando a entender que estavam a decidir sobre quem ficava com o defunto a keeper; depois de cochicharem algo que ninguém percebeu.

Cito usa da sua posição de capitão de equipa virando-se para Gordalheiro.

.

- Já, e decidimos e como somos teus amigos hoje jogas no lugar de avançado centro!

.

Caía a noite, eram quase seis e meia e o homem jovem, moreno, começa a dirigir-se para a saída do largo. Levava a saudade dos tempos de meninice estampada no rosto, e a imagem dos amigos no pensamento.

Ao virar esquina, em direcção ao mar, olhou para duas crianças que brincavam ao jogo das pedrinhas – estavam mal vestidas, tinham nos pés sandálias gastas, e olhar, percebia-se que há muito deixara de brilhar.

Nada lhe pediram nada; ao passar por elas lembrou-se de novo do funeral do Gordalheiro deixando escapar uma gargalhada - éramos mesmo crianças...que saudades.

.

sábado, março 27, 2010

Pedaços da minh’alma


.

Mam’Albertina

“You Don't Bring Me Flowers anymore


.

Os medos de Buco

.

.

A carrinha Renault 4 L voava pelo asfalto que ligava o bairro Prenda à avenida do aeroporto, batiam as três e meia de madrugada, uma noite estrelada como tantas outras, depois de um dia de árduo trabalho como o eram todos aqueles em que deixava a sua juventude nos caixotes amontoados no terminal de carga.

.

Envergava calças azuis escuras e uma camisa branca que se confundia com o branco da carrinha, enquanto a face se confundia com o preto do desenho da palanca pintada na porta, um alvo perfeito.

.

.

Cito trazia o coração apertado, e a mente confusa; não sabia se dirigir-se a casa para um banho reconfortante e um descanso merecido, mesmo que se enclausurasse num disco de “Mamas & Papas” ou porque não, escutar The doc of the bay de Otis Redding, antes de adormecer. Ou ao invés, virar à esquerda, descer ao inferno, e ir até ao Flamingo curtir um Vodka com laranja, ou se pegasse uma amiga do forró, um Cocktail Alexander. A escolha parecia difícil, mas o silvar das balas longínquas que ainda se podia escutar fê-lo decidir um mergulho nos líquidos salvadores da “disco” – depois era dar um salto até ao Farol, sacar um mergulho e secar-se com a brisa marítima.

.

Todas as noites, levava a sua equipa às respectivas casas, e Simão era sempre o último. Tinha acabado de o deixar em casa, e vinha agastado; doía-lhe a alma e apoderava-se dele a mágoa. Simão era homem negro, estatura idêntica à de Cito, rondaria os trinta e sete/oito anos, e era um dos carregadores da equipa. Atribuiu-lhe o lugar de “assessor de oficial de carga internacional”, cargo que não existia, mas para isso era coisa que pouco importava. Sentia-se honrado com a distinção e os outros membros da equipa passaram a desempenhar na perfeição o seu papel; Subchefe Simão mandava!

.

Carregaram as paletes do 747, num voo que pareceu estranho, e Cito resolveu ir até ao fundo da pista, para assistir de cátedra o que poderia ter acontecido, mas que por sorte ou perícia do comandante nada se passaria. Por volta das onze e meia da noite, pedira a Simão que o acompanhasse, e como ainda teriam de desocupar mais umas paletes, dera ao restante do pessoal folga para comer e descansar.

.

Olhavam o Jumbo escutando o roncar, à medida que se aproximava do local onde estavam, debruçados sobre o morro que dava para a praia; o barulho impedia de escutar as balas que, acompanhando a luz das estrelas, ofereciam, como quase todas as noites, sinfonias fúnebres. Quando o “passarão” passou por eles, flaps a fundo, trem a recolher, e nariz apontado ao firmamento, Cito cruzou o olhar com o rosto de Simão, e pressentiu no seu perfil, um negro macerado de tristeza.

.

- Simão que tens?

- Mais um “Cito-chefe”, mais um que levantou e quatrocentos que não regressam...mais.

.

Cito nada disse; precisava que aquele homem desabafasse, que lavasse a alma, que dissesse que sentimento tinha em relação aos que partiam. Ele que nunca tivera um gesto de contrariedade ao carregar as coisas dos outros, dos que partiam, de alguns que viviam no seu bairro, dos meninos que brincavam com os seus filhos; ele que sabia quantas e que “coisas” continham as paletes...coisas que nunca tivera, coisas que nem sabia a serventia.

.

Cito perguntou-lhe se tinha medo, se tinha receio das balas que se ouviam por cima do telhado de zinco do hangar daquele aeroporto imenso, das balas perdidas, ou da guerra que vinha a caminho!

.

Simão fraquejou pela 1ª vez ao longo de 4 meses de mano a mano diário; mostrou que dentro do peito o coração tinha o mesmo medo que tiveram tantos pais que, voo após voo, levavam os seus haveres e os seus filhos, rumo a um país que muitos nem conheciam.

.

Então colocou-lhe a mão no ombro em sinal de “hora de retirar”.

.

- Simão estão a partir, estão a esvaziar a nossa terra, mas eles voltam.

- Não voltam chefe, não voltam, e os que vierem não serão s mesmos...

-Voltam, sim! Eles têm medo da guerra, de uma bala perdida do que poderá acontecer aos filhos e às mulheres, mas voltam quando sentirem a paz.

.

Simão virou-se ligeiramente em direcção ao ponto luminoso que se afastava no céu, e, de costas viradas para Cito, murmurou num tom que deu perfeitamente para entender o que dissera, mas que só anos mais tarde este compreenderia.

.

- As balas matam, mas não a fome,,,

.

sexta-feira, março 26, 2010

Pedaços da minh’alma



Manuel Nascimento Oliveira

1950


 
Web Analytics